PENSE OU DANCE: NA QUESTÃO DOS PREÇOS DOS INGRESSOS, É CADA UM POR SI

Também já fui estudante. Sei que é uma etapa cruel da vida, embora bastem alguns anos pra você descobrir que pode ser pior, bem pior.

Nessa época, os sonhos são alimentados. Ao encarar a “vida real”, aquela que se imagina auto-sustentável, eles são na maioria dos casos substituídos ou simplesmente destruídos. A angústia das notas, da superação do ano letivo, do cursinho, do vestibular, da faculdade, é suplantada pela angústia do acerto de contas do mês, da busca pela felicidade no trabalho, no amor… O foco muda.

No mundo ideal, o estudante não deveria trabalhar. Deveria estudar, encher a cabeça de informações e experiências (entre elas, se for o caso, trabalhar, mas não por obrigação financeira). O estudante precisa ser criado pela vida. Mas o mundo ideal só existe nas leis e ideais. Na prática, o sujeito tem que meter as caras desde cedo, caso contrário fica pra trás. A competitividade é enorme e, sabe como é, camarão que dorme a onda leva.

No mundo ideal, também, governo é governo, iniciativa privada é iniciativa privada, da mesma forma que estudante é estudante, estagiário é estagiário, profissional é profissional. Mas como governos, estudantes precisam de atenção, de afago, o lance é chamar atenção.

Por falta de experiência, por não encontrar emprego fácil, por viver na maioria dos casos sem grana (mesada de papai é minoria neste país açoitado pela pobreza secular), é justo que se crie alternativas pra contribuir com a educação e formação desses jovens. Em 1994, criou-se o benefício da meia-entrada aos estudantes, a partir de leis municipais e estaduais. Eram os estudantes chamando atenção à sua causa, e o governo afagando novos eleitores (o governo era do Itamar Franco).

Dezessete anos atrás, parecia uma ideia boa. Mas governo é governo, iniciativa privada é iniciativa privada. Nenhum empresário abre um negócio pra fazer caridade. É, teoricamente, pra ganhar dinheiro (ou lavar dinheiro, mas isso é outra história): oferta e procura, valor, monetização, os percursos do capitalismo aplicável. Quando alguém exerce ingerência sobre seu negócio, ele precisa reagir de alguma forma, pra continuar ganhando dinheiro com seu empreendimento, com o seu trabalho. A lei da meia-entrada pra eventos culturais é, pois, uma ingerência sobre o empreendimento alheio. Mexe com os custos, com a precificação, com o planejamento.

É, por outro lado, o que se pode chamar de distribuição de renda. O empresário arcando com o social, com a educação e formação da juventude. Seria, se a lei fosse melhor ajambrada. Não foi. Não houve contrapartida ao empresário. E pior: a partir de 2001, com a descentralização da emissão das carteirinhas, ato imposto por medida provisória, qualquer um na prática passou a ter o direito de produzir tais documentos que valessem ao benefício. O montante de 23% em média de utilização do benefício saltou em dez anos pra 80%. Não há planejamento que aguente.

Daí que as carteirinhas de estudante não agradam nem mais à UNE. Não do jeito que estão hoje. “Do jeito que está, a lei da meia-entrada é uma lei de mentirinha. Queremos restabelecer o prestígio da carteirinha, mas sem o monopólio da UNE sobre a emissão do documento. Basta que toda a rede de entidades estudantis ligadas ao MEC possa emiti-lo”, diz Daniel Iliescu, presidente da entidade, ao caderno de cultura do Jornal O Globo.

O caos se deu porque virou um círculo odioso de “quem-é-mais-esperto”. O sujeito terminava seu ciclo estudantil, se formava, mas, por brechas enormes no sistema, conseguia de modo fácil e rápido manter-se com o benefício, através da falsificação simples de documentos ou até mesmo da apresentação de comprovação de matrícula antiga. Quem emite a carteirinha, quer é ganhar dinheiro. Quem compra, quer manter o benefício. Quem vende o produto cultural não quer prejuízo e aumenta o preço. É realmente uma lei de mentirinha, e só está vampirizando o negócio.

O curioso é que a briga se tornou insana. Estudantes olham apenas pro seu umbigo. O caso do Lollapalooza Brasil foi exemplar. O festival anunciou a pré-venda de ingressos a R$ 500,00, por dois dias de evento. A juventude acéfala esperneou (esperneou no anúncio dos preços e esperneou ao tentar comprar o ingresso e não conseguir, por problemas no site – mas essa juventude é chorona mesmo, inconsequente e volúvel). A empresa que está organizando o festival se justificou, dizendo que as carteirinhas são o maior custo a elevar o preço. É bom desconfiar de ambos.

O estudante que esperneia não faz a conta. R$ 500,00 (mais taxas de inconveniência e de entrega, que elevam o valor a R$ 600,00) dividido por dois dias, dá R$ 250,00. São 36 atrações confirmadas (até o momento), de modo que cada show, em cada dia, sai a R$ 13,89. Na matemática burra e simplista, aquele que chora pelo “valor alto” do ingresso não se deu conta que está pagando R$ 13,89 pra ver o Foo Fighters, mais R$ 13,89 pra ver o Arctic Monkeys e assim por diante.

A matemática é burra e simplista – vale só como exercício, não como argumento – porque o comprador não tem a opção de pagar pra ver só o Foo Fighters e muito menos a R$ 13,89; mas serve pro propósito de planilha de custos. O Foo Fighters certamente custou bem mais do que isso, mas os custos do empresário são maiores do que apenas o cachê dos artistas – e variam de acordo com o tipo de evento.

Tem estrutura, passagens aéreas (que pra América do Sul são muito mais caras do que em viagens dentro da Europa ou dentro dos Esteites), vistos, frete de equipamento, impostos (que chegam a 33% do valor orçado), ECAD, taxa da ordem dos músicos, promoção do evento, CET e afins, impressão e venda de ingressos e, claro, a malfalada carteirinha de estudante, que, sim, estraçalha a projeção de ganhos, com 80% das vendas sendo realizadas pela metade do preço.

Coloque numa planinha quais desses custos impactam numa precificação de show no Chile ou na Argentina, os termos de comparação mais usados pelos chorões, e perceberá que os impostos são menores, e que não há ECAD, nem carteirinha de estudante. Obviamente, o preço diminui. Mas é uma conta que ninguém faz. Reclamar é mais legal e divertido (eu também acho, embora os argumentos jamais se sustentem) – e reclamar do promotor do evento, claro! Esquece o reclamão que ele vive no Brasil e isso tem um custo.

O tal “custo-Brasil” apavora investidores, limita aportes estrangeiros de dinheiro, enclausura os índices de crescimento nos mais baixos patamares, afeta o surgimento de novos empregos e tudo o mais. Você já ouviu falar dele, você se depara com ele diariamente. Se quiser reclamar, tenha em mente que o vilão maior de tudo isso é o “custo-Brasil”. Pense em como votar nas próximas eleições, pois.

A solução passa pela mudança da lei da meia-entrada. A extinção do benefício seria o ideal, mas logo veremos que é melhor que isso não ocorra.

Ainda em matéria no caderno de cultura de O Globo, “um projeto de lei pra tentar ordenar a questão está parado na Câmara dos Deputados desde 2009. (…) prevê a criação de uma carteira de estudante produzida pela Casa da Moeda e estipula que os produtores poderão vender só 40% de seus ingressos com o desconto. A UNE é contra a limitação, mas o presidente da entidade está disposto a negociar”.

Ou: “o debate se tornou mais frequente desde outubro, quando o Estatuto da Juventude foi aprovado pela Câmara e, agora, aguarda votação no Senado. Se o projeto entrar em vigor como está, a lei da meia-entrada, hoje garantida por legislações estaduais, passaria à esfera federal. E passaria a beneficiar todas as pessoas de 15 a 29 anos. Representante do Grupo de Ação Parlamentar Pró-Música, o cantor Leone esteve em Brasília na semana passada para debater a questão: ‘o benefício pra todos de 15 a 29 anos manteria os preços altos. As pessoas fora dessa faixa não poderiam pagar. Queremos federalizar a meia-entrada, mas com a cota de 40%. E que as carteirinhas sejam emitidas só por entidades estudantis ligadas ao MEC'”.

Há gente pensando em contornar o problema dentro da legalidade, com o viés do apreço social, como as ações do Circo Voador e da Fundição Progresso: um quilo de alimento garante também o valor pela metade, de modo que o preço de face do ingresso é só pró-forma, pra determinar o valor da meia-entrada.

O Fourfest 2011 também usou artifício parecido: dois ingressos por R$ 200,00 era a promoção. O ingresso unitário saía por R$ 160,00 (a meia, claro, por R$ 80,00). Perceba que a “inteira” era quase o mesmo preço da inteira, o que não punia os honestos que não falsificam carteirinha de estudante (a qual eu carinhosamente chamo de carteirinha de pilantra).

São estudos. Podem ou não dar certo. O diálogo é importante, o exercício é importante, mas nada é certo, o que leva à argumentação fácil e até febril de que o ideal é acabar de vez com o benefício.

Do ponto de vista lógico, é mesmo. O mercado não pode aceitar ingerências do governo (há exceções, mas essa não é uma delas). Governo é governo, iniciativa privada é iniciativa privada. Mas justamente por conhecer o empresariado brasileiro de outros carnavais é que você não pode cair nessa armadilha. Ou alguém acredita que o preço realmente cairia a valores “justos” com o fim da carteirinha de estudante (os produtores alegam que o preço dos ingressos poderia ser hoje até 70% dos valores atuais)? Quem determina o que é “justo”? O que você acha hoje que seja “justo” pagar por um show, por exemplo, do Kills numa casa pequena como o Beco?

Quem determina essa “justiça” é a planilha de custos do empresário (que André Barcinski trata aqui de forma romântica). Paga o valor quem quer. É a lei básica de mercado. Entretanto, as reclamações continuariam, por certo. Cai na esfera de “valor”, que abordei de leve aqui. Ainda é a tal “lei de mercado”, que em teoria iria se adaptando e se ajeitando ao sabor da demanda. Os preços se ajustariam. Mas é uma teoria não garantida.

Porque nessa discussão toda, a verdade é que todos querem levar vantagem. É cada um por si. O governo legisla sobre o negócio dos outros pensando em ganho político num assunto polêmico. O estudante pensa no próprio bolso, em si próprio, e que se dane quem não é estudante. O não-estudante faz de tudo pra burlar a legislação, falsificando documentos pra tirar a carteira. O empresário tenta salvar o seu, aumentando os preços abusivamente, tentando minimizar o impacto negativo e tirando proveito dessa história. Todos têm culpa nessa contenda. Todos perdem. Mas perde principalmente aquele maluco honesto, que não falsifica carteirinha e paga o preço exorbitante imposto pelo empresário. E, óbvio, com tanta gente esperta querendo se dar bem, perde a lógica.

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Comentários

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10 comentários

  1. A discussão sobre a meia-entrada eu considero pertinente. Mas como fica subentendido aqui, ela acaba mascarando outras discussões. Não entra na minha cabeça que o Chile, ainda com uma população menor mas com uma qualidade de vida melhor, tenha uma diferença tão grande nos ingressos. E falo de 50 reais no tal passe de dois pro Lollapalooza, ainda levando em conta que há aqueles 20% aqui que serão vendidos na entrada inteira, ou dobrada digamos. Mas o que faz da lei de meia-entrada um tremendo engodo é o fato de que ela somente impõe ao produtor que ele deva cobrar metade do preço em determinados ingressos sem garantia alguma de contrapartida.

    Acho que os estudantes chorariam menos se pagassem 1/4 de entrada, sendo esse valor 200 e o inteiro 1000, do que se todo mundo pagasse 150. Sinto que há um certo pensamento mesquinho nessa história. Embora eu não me convença dessa história de que com preço igual sairia barato pra todos. A meia-entrada acaba sendo uma bela conveniência para produtores faturarem um trocado a mais.

  2. Agora, um adendo:
    “Há gente pensando em contornar o problema dentro da legalidade, com o viés do apreço social, como as ações do Circo Voador e da Fundição Progresso: um quilo de alimento garante também o valor pela metade, de modo que o preço de face do ingresso é só pró-forma, pra determinar o valor da meia-entrada.”

    No caso especial do Circo Voador, a meia entrada é para estudantes, pessoas até 21 anos (legislação do Rio) e ainda tem as regalias da casa – meia entrada não só para os que doam alimentos, mas também para assinantes do jornal O Globo e clientes da Tim. Ou seja, só paga inteira quem é paraquedista ou muito vacilão.

    E ainda tem os shows do Queremos, bancados pelo público, que quase sempre são no Circo Voador (até aqui só uma vez que não). Além desse rol de brechas legítimas pra meia-entrada, existe ainda as listas amigas no Facebook e no site Lista Amiga.

    Acho que isso tudo ilustra bem esse paradigma da meia-entrada.

  3. pegando essas partes: “… está pagando R$ 13,89 pra ver o Foo Fighters, mais R$ 13,89 pra ver o Arctic Monkeys e assim por diante.” e depois: “O que você acha hoje que seja “justo” pagar por um show, por exemplo, do Kills numa casa pequena como o Beco?”

    fiquei com algo na cabeça:
    shows pequenos que são mais baratos que os festivais acabam saindo muito mais caro, algo que não foi abordado no ótimo texto: “custo-benefício”.

    torço sempre para minhas bandas favoritas tocarem em festivais, assim pago só 1 valor caro mas vejo muitas bandas, enquanto que show solo por mais que seja lindo intimista maravilhoso em local menor acaba saindo muito mais caro, e são menos horas de diversão (apesar que alguns vão argumentar terem mais satisfação por estar mais perto do seu artista favorito tocando um set list maior!)

  4. Penso um pouco diferente, é claro que a falsificação de carteirinhas faz o empresário subir um pouco o preço do ingresso, acho q se não houvesse os malandros, ainda assim os preços seriam exorbitantes. No Brasil os empresários sabem que não importa o preço a ser cobrado, sempre vai ter quem compre, é só ver o valor que pagamos pelos carros, e ninguem compra ele com carteirinha de estudante.

  5. Fernando, desculpe descordar do ponto da existência da carteirinha. Sou produtor cultural e sou um ardoros defensor da sua extinção. Dois pontos:

    1. a lei da carteirinha foi criada para fornecer cultura ao estudante. Não forcene. Ela dá meia entrada para a molecada assistir Mercenários no cinema enquanto balés, teatros, concertos andam às moscas. Na real tudo isso está ao alcance dos dedos no youtube também, então qual é de tentar mascarar essa de que o jovem merece esse “benefício”.

    2. só paga inteira quem é vacilão mesmo, sem dúvida. Eu tenho um celular, uma conta no banco e um seguro no meu carro e todos os três me oferecem 50% de desconto em teatros, cinemas, etc. Não é um benefício, é apenas um ajuste à realidade. O preço real não é o inteiro. O inteiro é a multa para quem é desinformado (ou brutalmente honesto).

    O mercado se ajusta sim.

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