PENSE OU DANCE: NO MEU TEMPO ERA MELHOR

Lá pelos meus quatorze, quinze anos, acontecia algo curioso em casa: meu pai pegava todos os nossos discos novos e passava horas gravando-os em fitas cassete, pra depois ouvi-los no carro. Tinha centenas delas, gavetas cheias. Eram discos do Jesus & Mary Chain, Ira!, Fellini, Violeta de Outono, The Cure, The Smiths, Siouxsie & The Banshees, Talking Heads, Legião Urbana, Lloyd Cole & The Commotions… Chegou a gravar até o primeiro do Spacemen 3, antes de abandonar o hábito.

Acho “curioso” porque, embora na época eu achasse um baita barato o “velho” (44, 45 anos é velho?) ouvir e gravar “nossas” músicas, de bandas novas e algumas barulhentas, hoje passados trinta anos quase, acho difícil imaginar ele indo ao trabalho ao som de “Just Like A Honey”, por exemplo, ou “Índios”, ou “Girl Afraid”, ou “Revolution”.

Ele gostava de jazz, blues, era das antigas. Contava histórias engraçadas de como ele roubava dinheiro que meu avô dava pra ele comprar leite só pra ir aos puteiros ou comprar discos de jazz e uísque com os amigos em Belém, no pós-(segunda)guerra, época de sua adolescência. Definitivamente, um engenheiro com essa formação musical não iria ao trabalho ouvindo The Cure ou Spacemen 3.

Então, por que ele gravava aquelas fitas?

Pra gravá-las, embora não fosse estritamente necessário ouvi-los, ele escutava um a um os elepês que comprávamos, eu e meu irmão, nas lojas do centro de São Paulo. E quando saíamos em família, ele colocava ora uma fita “nossa”, ora uma “deles”, que incluía seus jazz e blues ou os Beatles e emepebês da minha mãe (Caetanos, Gal, Clara Nunes, Mutantes…).

Entendo hoje meu pai como um democrata musical. Pra qualquer distância de carro, mas principalmente nas longas viagens que comumente fazíamos, ele alternava as preferências musicais – e, de quebra, se precavia em não irritar os filhos adolescentes, mandando volta e meia um Smiths na estrada.

Mas também pode ser um lance apenas de curtir o ato da gravação – e da música, claro. Ser um colecionador, um curioso.

Sem Internet, e blogues e sites, pra orientar sobre o que ouvir ou ajudar a descobrir coisas novas, um expediente que dez entre dez pessoas utilizam hoje em dia, ele usava nossos discos pra se manter “ligado” no que se produzia em música na época. O que não quer dizer que gostasse do que ouvia ou descobria, mas certamente fazer essas fitas o ajudava a relaxar. Era um divertimento.

Eis que diante do que se encontra hoje, meu pai poderia dizer: “no meu tempo era melhor”. Ele tem razão. Pouca gente para pra ouvir um disco de cabo a rabo. Não há apreciação. O contato físico com as mídias é um barato que se perdeu hoje – e que muita gente tá tentando rever, bem como a qualidade. “MP3 não tá com nada”, você é capaz de ouvir dizendo por aí. CDs, idem. O lance é vinil. E sistemas de sons que emitem as frequências que o ouvido humano pode captar. O lance é ser vintage, agulha, acetato, pequenos chiados.

Ouvir música era um lance mais contemplativo. Hoje, é mais furtivo. Então, lá era melhor.

Bom, era e não era. Isso é papo de velho. Tem e sempre terá alguém dizendo que “era melhor no meu tempo”. Porque talvez fosse e talvez será mesmo. Quando você é adolescente, seu contato e sua relação com a música são totalmente diferentes de quando você se torna adulto e passa a ter aquelas preocupações que só os velhos responsáveis têm: pagar contas, criar filhos, trabalhar, se sustentar. Quando se é jovem, é festa, bebedeira, contabilizar namoros e pouca coisa mais. A vida se apresenta de uma outra maneira, de um jeito que parece ser mais divertido. É claro que “no seu tempo” sempre terá sido melhor.

Daí, mergulhados em responsabilidades e longe do mundo mágico da adolescência, matam a música, o rock ou o que quer que seja com bastante facilidade. O rock morreu tantas vezes quanto ressurgiu pra uma nova geração, com novas bandas e novas mídias. É uma morte anual: “esse é o pior ano da música”, você deve ter cansado de ler. Pode ser, pode não ser, não importa.

A sua relação com a música é feita diariamente e com ela se constrói a memória que lhe permitirá dizer que no seu tempo era melhor. Os rapazes e moças de vinte, vinte e cinco anos, que maldizem a experiência daqueles com vinte anos a mais, são os que verão duas décadas a frente, a geração que hoje está florescendo na adolescência assumir cadeiras de comando nas empresas e veículos de comunicação, pra então entupir comerciais de tevê, rádio e afins com referências suas, que podem incluir a música e o jeito de ser do Restart, do Cine, do Luan Santtana. Esses passarão a ter status de “clássico”. E se dirá a todo canto: “no meu tempo era melhor”.

É um processo cíclico, geracional, claro. Mas não custa nunca lembrar: a música não morreu, o rock não morreu, este ano ou o anterior não foram os piores da música, nem o próximo será. Você é que deve ter perdido o mesmo contato que tinha com a música quando era mais jovem. Você cresceu, amadureceu e agora olha pra um tempo que não volta mais, com saudades. Seu tempo passou.

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Comentários

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2 comentários

  1. Amigos, gostei muito do site, gostaria de saber se vocês possuem parcerias ou se há espaço para novas colunas, pois tenho um blog e possuo interesse em colaborar com vocês.

    Fico no aguardo.

    Sds,

    David

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