O modo como você vive alterou a sua forma de ouvir música. É a sua vida que rege sua relação com a música, não o mercado. O que o mercado faz é se adaptar a isso, te oferecendo formas de consumo que se encaixem ao seu cotidiano.
Já vai longe, uns vinte anos, mais ou menos, o tempo em que eu conseguia me debruçar sobre um disco e apreciá-lo faixa a faixa, na ordem, devorando detalhes da capa e do encarte. Cresci, envelheci, cresceram em mim trocentas responsabilidades, falta-me agora espaço num dia corrido pra manter tal ritual.
A gente fica velho, mas não só o peso da idade tem culpa nessa mudança.
Até os anos 1990, antes da chegada comercial do CD, era bastante comum as famílias se reunirem pra ouvir discos. O ato era socializante. Como na época do surgimento da tevê – o aparelho – quando vizinhos visitavam vizinhos que tinham tevê, só pra assisti-la, houve um tempo em que alguns discos e discotecas pessoais atraíam amigos e vizinhos pra apreciá-los.
Era um encontro, uma união. Todos sentavam-se próximos pra ouvir música e conversar. E quando acabava um lado, alguém tinha que levantar pra virar o disco. Comentava-se sobre aquela audição, rolavam uns birinaites, era um ritual, era um evento.
Voltando mais no tempo, antes da vitrola, os avós contam que a música guiava eventos sociais familiares à base do violão, do piano, do canto. As pessoas paravam em torno da música, apreciavam a obra de cabo a rabo, na ordem em que ela foi planejada pelo artista.
E se você quiser saber, há uma certa lógica, não só conceitual, pra escolha da ordem das faixas num álbum, dependendo da tecnologia (clique aqui pra ler – e lembre-se de que o formado digital já mudou tudo, de novo).
Aqueles eram tempos bucólicos. Também havia a correria pra ganhar a vida, mas eram tempos bem lentos se comparados com os tempos de hoje.
A partir do novo século, anos 2000, Internet de alta velocidade e farta, informações à rodo, globalização, competitividade alucinante, estudo, trabalho, cursos extras curriculares, cuidado com o corpo, vida social, família, amigos, cidades maiores, mais gente, mais distância a percorrer, mais trânsito… Menos tempo. Tudo mudou.
O MP3 permitiu que os tocadores de música fosse menores, e adaptamos essa facilidade às nossas necessidades. As músicas nesse formato têm qualidade de impressão mais baixa, mas os aparelhos que carregamos também emitem sons com qualidade menor. Eles mesmos são cada vez menores. Há menos exigência com relação a isso, em favor da facilidade de carregar músicas num formato compacto plenamente adaptável à agilidade que precisamos.
Passamos a carregar músicas e não álbuns. Não mais LPs ou CDs. Só músicas. Ainda há álbuns. A maioria dos artistas ainda fazem discos com começo, meio e fim, com capa e conceito, porque é assim que conseguem pensar uma obra completa (e, como disse, não há mais limitação de espaço físico). Mas carregamos conosco as músicas dessa obra, os aparelhos a compreendem em separado, e nós nos acostumados a pensar em casa música como uma unidade.
Então, a maioria já carrega músicas como se elas não fizessem parte de um conjunto, de uma coleção (que é o album), e consequentemente não compreendem o conjunto, o conceito, a obra em si. Não há mais tempo pra isso.
Então, mesmo pra quem é aficionado e precisa (ou quer ou acha que deve) apreciar uma obra na totalidade, afinal a maioria dos artistas cria dessa forma, é preciso bolar mecanismos cotidianos pra encaixar essa apreciação na sua agenda diária: enquanto vai ao trabalho, mune-se de CD ou tocador de MP3 (fora do modo randômico), seja no carro, seja no ônibus, seja a pé; em casa, ao voltar do trabalho, durante o relaxamento; no final de semana, tirando o dia pra ficar de papo pro ar ouvindo; durante o exercício, com fontes de ouvido…
De qualquer maneira, nossa relação com a música se tornou individualizada. Ela não implica mais o trato socializante, de reverência. A isso, talvez, restaram os shows. Discutível.
Minha relação com a música volta e meia se apresenta quebrada, sem intimidade. Não há mais, após a última nota de uma música, a certeza da nota que irá começar a próxima canção. Dificilmente. O cérebro já não funciona assim.
Os álbuns são necessários, mas eles me parecem tomar muito do meu tempo cotidiano pro devido entendimento. Os álbuns, então, passam como se nunca tivessem vindo, não parecem deixar sua marca. A fartura de produção e de oferta gratuita faz com que você sempre esteja perdendo algum disco novo durante aquele tempo gasto pra ouvir um outro disco.
Mas essa é a minha relação um tanto esquizofrênica. Por ter tudo à disposição, quero tudo, não tenho nada. Assimilo muito pouco. Temos muito, não ficamos com nada. Do coletivo, do social, passamos ao individual e, então, pro nada, pra relação nenhuma, a não ser a fugacidade do “tomar conhecimento”.
Talvez, como na nossa própria vida, fosse preciso dar um breque e ter e consumir só o possível. Mas será que conseguimos? Tem volta? Algumas pessoas conseguem, são poucas. A maioria não volta e o mercado precisa acompanhar e compreender essas novas relações com a música. Ou criar uma nova. Mas essa capacidade, há tempos, ele deixou de ter.
Entender as tendências num futuro razoavelmente curto é o ponto-chave aqui. Mas o mercado não sabe nem o que acontece no presente, o que dirá exigir dele uma antecipação. Esse tal mercado está tão pulverizado que nem se tem uma ideia de quem se deve cobrar essa nova lógica.
O fato é que os últimos vinte ou trinta anos nos ensinaram bastante sobre isso: do jeito que está, certamente não vai ficar. A forma como ouvimos e consumimos música muda ao sabor das exigências cotidianas e das estruturas macro sociais. E vai continuar mudando. Saber com antecipação como vai ser a próxima mudança é o grande objetivo.
Ideia pra um projeto: um “Clube do Álbum”, onde as pessoas se reuniriam em algum lugar com boa acústica e boas bebidas e uma programação de álbuns inteiros com horário marcado: às 20:00 o disco do Damon Albarn, às 21:00 o Dark Side of the Moon, às 22:00 algum Bowie, às 23:00 o novo do Echo & The Bunnymen. Na semana seguinte, outros discos.
É uma boa hehehe