De táxi a passagens aéreas, de hotéis a casas, de comidas e serviços de reparos, tudo pode ser encontrado em aplicativos no celular ou na Internet.
O novo século nasceu com uma oferta cada vez maior de facilidades ao alcance das mãos (dos dedos), barateando produtos e serviços, agilizando processos, integrando pessoas. Parece que nada mais é como era antes.
Nem mesmo no mundo da música. Se no século passado, as gravadoras ditavam normas e tendências e conseguir um contrato era o sonho de todo artista, nos anos 2000 o artista virou a gravadora, o selo, o distribuidor e o divulgador – são muitas as ferramentas e plataformas pro músico levar ao mundo sua obra.
No século passado, havia uma forte indústria da manipulação de tendências. O jabá nas rádios (e redes de tevê e jornais e revistas) era um esquema tão acintoso quanto conhecido, mas era o que tínhamos e a própria indústria acabava determinando o que as massas iriam ouvir. E ainda existe hoje, mas seu impacto diminuiu consideravelmente pra uma parcela do mercado consumidor que se atenta a outras formas de buscar tendências – do mais popular ao artista mais subterrâneo.
O diacho é que as práticas de quando a indústria era forte e descaradamente manipuladora meio que subsistem no novo cenário em que se pressupõe serem práticas menos necessárias. Pensando no subterrâneo da música, é ainda mais espantoso perceber que os relacionamentos se tornam cada vez mais impróprios.
Com as facilidades de produção, o artista pode criar uma obra com custos bastante baixos, pode publicar numa ferramenta como o Bandcamp (que é basicamente uma banquinha virtual de discos), mas esbarra em alguns gargalos: a divulgação, a circulação e a distribuição.
Quando a coisa sai do virtual, encontra-se velhos problemas. Encontra-se o mundo real. E ele não é cor-de-rosa tampouco cheiroso.
É aí que voltam a surgir novos modelos de velhas práticas.
A Internet e ferramentas como o WordPress ofereceram a qualquer um que tivesse um mínimo de boa vontade, disposição e dedicação a chance de virar “mídia”. Houve uma explosão de blogues e sites. Era gente sem a mínima vocação pro jornalismo cultural, pra crônica, pra crítica, ou mesmo pra escrever, lutando pra se fazer ler e ouvir. Pros artistas do subterrâneo, uma dádiva. Se a grande mídia não lhes dava atenção, agora havia um contingente de escribas dispostos a digitar alguma coisa sobre a obra deles.
Só que nada é gratuito, como nos ensinaram as velhas práticas da indústria anciã do século passado. Quer tocar no Chacrinha? Vai ter que pagar um tanto ou fazer show nos bailões da perifa. Quer sair num blogue? Manda aí um CDzinho, ou outro mimo, um ingresso pra show, algo pra ser sorteado… E assim foi engatinhando o mundo da música nesse novo século.
A prostituição de sites e blogues com assessorias de artistas, organizadores de festivais, grandes gravadoras ou pequenos selos só é uma recauchutada no modo como a indústria funcionava até duas décadas atrás – e que pra quem é do mainstream ainda se faz valer sem o menor pudor.
Problema maior é quando a gente se depara com tais práticas no subterrâneo da música. Sem grana correndo pra jabás tradicionais, troca-se de tudo: ingressos pra shows, discos, VIPs pra festas, camisetas e até mesmo compartilhamentos e “likes” em redes sociais. É o “me ajuda a divulgar meu disco que eu ajudo a divulgar seu site”. E assim a promiscuidade vai aumentando.
Há donos de blogues e sites que viram assessores de imprensa e escrevem sobre os artistas que são seus clientes, fazem resenhas sobre as obras de seus contratantes. Há outros que viram organizadores de festas e chamam artistas pra tocar, numa relação no mínimo duvidosa pelo não-distanciamento. Muitos são de bandas e têm dezenas de amigos e conhecidos também de bandas – escrevem e vivem numa bolha. Outros viram curadores de festivais, eventos ou festas. Há ainda os que fazem questão de fazer parte da “estratégia” de gerenciamento de carreira de artistas.
Sim, existem sites que se especializam em dar “furos” de exclusividade, amarrando o artista a exigências bisonhas como só permitir que o artista divulgue a obra a partir do endereço eletrônico da matéria exclusiva. Não são raros os casos dessa excrescência.
Um bom exemplo são os streamings exclusivos e em primeira mão de discos que serão lançados dali a pouco. Há sites que exigem que o artista só divulgue em suas redes o endereço eletrônico da matéria exclusiva – e ficam infantilmente putos se o artista divulgar o link direto do Bandcamp, por exemplo, e não dá matéria.
Deveria caber ao leitor perceber que não está lendo ali linhas jornalísticas ou críticas, mas sim uma peça de divulgação, um release oficial, uma ferramenta que faz parte de uma “estratégia de divulgação”. Um engodo. Mas como exigir isso do leitor se o leitor não é informado da relação promíscua?
Isso só acontece porque os artistas não enxergam problemas nessa relação. Se o site for meu amigo, por que diabos ele vai falar mal da minha obra? Isso também só acontece porque muitos blogueiros e jornalistas não vêem problemas nessa relação.
A bem da verdade, parece uma relação bem frutífera pra todas as partes. Uma assessoria de imprensa tem realmente que conhecer muitos jornalistas, é parte do seu escopo, faz a diferença na hora de vender seus serviços. Uma produtora de eventos (festivais, festas etc.) tem que ter uma boa relação nesse sentido também, afinal de contas quanto mais elogios conseguir nesse mar de mídia, melhor pros negócios. Selos idem.
Sites como Pitchfork, Stereogum, Spin e muitos outros da gringolândia não escondem tal promiscuidade. São raríssimas as resenhas realmente críticas a qualquer artista. Muitos desses veículos promovem festivais, fazem curadoria de palcos em grandes festivais, vendem espaço publicitário pra gravadoras e distribuidoras grandes, selos médios e pequenos, serviços de streaming ou parceiros de comércio online. É um grande negócio e esse troço de isenção pode atrapalhar.
Por outro lado, não há relação totalmente isenta nesse negócio. Os interesses de fato possuem limites um tanto turvos e certa proximidade e complexidade é desejável e aceitável. Mas no mundo subterrâneo, principalmente o brasileiro, é ainda mais grotesco tal relacionamento.
Artistas pequenos, fora do radar das grandes massas, aqueles que fazem uma música não-comercial por natureza, por vezes “contestadora” ou coisa que o valha, deveriam utilizar as novas ferramentas desses novos tempos pra tentar subverter a lógica que sempre vigorou no mainstream. Mas não. São normalmente eles que fomentam essa linha de raciocínio, abraçados com os jornalistas e blogueiros. Do poder do elogio (veja aqui) à falta de profissionalismo, ambição e compreensão do mercado (veja aqui), há muitas lacunas a se preencher pra que algo minimamente identificável como “cena” possa acontecer (se é que precisamos ter cena alguma – “cena” parece ser mais um fetiche do que uma necessidade).
Artistas ainda comemoram aparecer num veículo da grande mídia e pouca bola dão aos pequenos veículos. Há artistas que não vêem o menor problema de usar a influência pra tocar em um grande festival (como um integrante que trabalha na organização do Lollapalooza Brasil conseguir que sua banda seja escalada ou um amigo dos Medinas conseguir palco no Rock In Rio). Como se vê, há “problemas” em todas as frentes, blogueiros/jornalistas, artistas, assessorias, selos, produtores.
Nem tudo são demônios, porém. Ainda há sites que valem a pena ler e seguir (leia aqui ou veja essa singela lista de dez sites brasileiros que você deveria ler diariamente e essa outra lista aqui). Mas salvo o salto tecnológico que o século atual nos presenteou, ainda estamos vivendo como no século passado.
Existem diversas perspectivas para que essa prática se perpetue, mas dia desses um artigo do crítico Alex Ross me deixou bastante intrigado: como a crítica artística pode sobreviver na era do caça-clique?.
Não é o fato de as pessoas não estarem nem aí pra opinião. Nas entrelinhas, ninguém quer dar é atenção a um crítico que pode confrontar suas ideias pré-concebidas. Percebo isso na caixa de comentários do Na Mira: quantas vezes não fui xingado quando sentei o pau em Arctic Monkeys ou Tame Impala? Algumas chibatadas até são merecidas, mas a maioria delas vêm de pessoas que simplesmente não suportam o fato de que a banda que elas tanto amam possa ser uma porcaria.
Com os títulos sendo mais importantes que o texto em si, a crítica tornou-se desinteressante. Portanto, blogs com conteúdo crítico têm ficado mais raros, já que as métricas apontam que insistir em posts com esse viés possa se tornar insustentável.
Apesar da hegemonia dessa dinâmica “assessoria de imprensa/divulgador” dos blogs, vejo uma crise sem precedentes no meio. Não vejo nenhum problema em monetizar com um site, mas existe um amadorismo muito grande porque vende-se por pouco, muito pouco.
Se não me engano foi Umberto Eco (ou foi o Morin? Diacho de memória…) que lembrou uma vez que a arte, desde a Renascença, dependeu de patrocinadores. O problema é que a moeda de troca é o clique, e a crítica (assim como o pensamento crítico) vai na contramão disso. Já passou da hora de pensarmos em uma abordagem que faça com que essa balança fique mais equilibrada, senão só o independente vai continuar existindo, e isso significa uma fragilidade estrutural, já que nem todos têm tempo (porque tempo é dinheiro) para manter um blog independente.