“Leaving Neverland”, documentário de Dan Reed, exibido pela HBO em 2019, acaba expondo mais uma vez a questão: é possível separar o artista do ser humano? A questão já foi e ainda é muito debatida, basta dar um google.
Mas, em quatro horas de entrevistas contundentes, emocionantes e impactantes, o documentário parece não deixar dúvidas sobre o lado criminoso do “Rei do Pop” Michael Jackson. “Parece” porque muita gente ainda defende o astro, fervorosamente, do que é apresentado na obra.
O diretor fez um retrato mais emotivo e minucioso dos abusos sofridos e suas consequências na vida de duas pessoas, James Safechuck e Wade Robson, do que uma investigação propriamente dita. Não confronta versões – raramente você ouve o outro lado. Não vai atrás de provas. Não vasculha atrás de outras vítimas. Não fala com autoridades. Nada disso. Só quer mostrar que é possível que aquele ídolo, qualquer ídolo, tenha um lado sombrio, e como isso pode afetar dramaticamente a vida de tanta gente.
O próprio diretor disse em entrevista à Vice que nunca conheceu Michael Jackson: “nunca o entrevistei, não sei o que tinha na história dele ou na sua programação psicológica que o levou a molestar meninos, não quero especular sobre isso”. É sobre como dois homens adultos lidam com a clarividência de que foram abusados continuamente na infância, manipulados (eles e suas famílias), social e afetivamente, e estão destroçados hoje em dia, tentando seguir a vida.
“Você quer que seus filhos façam festa com músicas do Michael Jackson? Não sei. Eu não ia querer. Mas ela devia ser banida? Acho que não. É uma ótima música, ele foi um grande artista e homem do entretenimento. Mas ele também era um pedófilo”, resume o diretor.
A questão é importante. Eu mesmo, na minha infância, tive festas e festas ao som de “Thriller”, o disco que era o grande sucesso dos anos 1980 (e até hoje), com minha mãe realizando concursos de dança entre meus amigos pra ver quem imitava melhor o bailar de Michael Jackson. Ele e sua música fazem parte da história e da educação cultural de milhões e milhões de pessoas. Suas acusações de abuso sexual infantil, a partir da década de 1990, quando a música pop já havia ganhado outros contornos, não conseguiram destruir sua reputação.
Até a sua morte, em 2009, Jackson era tido mais como vítima. Suas plásticas, sua postura infantilizada, seu clareamento de pele, suas transformações físicas, tudo pressupunha um cidadão com algum problema psicológico, de aceitação, dele mesmo ter sido abusado psicologicamente na infância pelo próprio pai, o “verdadeiro vilão” da história, Joe Jackson, falecido em 2018. Sua relação com as crianças era vista como “natural”, afinal sua própria infância havia sido furtada ns busca pelo sucesso, pelo trabalho estafante, pela fama e pelo dinheiro.
A certa altura do documentário, a mãe de um dos rapazes, dolorida até a alma, diz: “talvez eu pudesse perdoá-lo em algum nível se tentar entender que ele era doente. Mas perdoar a mim mesma é outra coisa. Não sei se conseguirei fazer isso”.
O mecanismo de salvaguarda em torno do ídolo foi tão eficiente, que as vítimas por muito tempo negaram as acusações, ajudaram Michael Jackson nos tribunais, e diziam simplesmente amar aquela figura estranha. É o real alcance de um caso de abuso: não é só “doença”, não é só sexualidade, é poder, poder e poder. É saber que se pode cometer toda e qualquer atrocidade sem ser incomodado com mundanidades como “leis” e “justiça”, simplesmente porque a vítima foi manipulada pelo terror ou pela afeição ou pelo dinheiro. No caso de James Safechuck e Wade Robson, foram as três coisas.
Não se sabe ao certo quantas de crianças Michael Jackson abusou sexual e psicologicamente. O documentário deve trazer à tona novos casos. Toda criança que um dia dormiu em Neverland é uma abusada em potencial. O certo é que ele destruiu a vida de muitos deles e de suas famílias.
Mesmo assim, com uma obra tão impactante, há muita gente, fãs ardorosos, tentando deslegitimar os depoimentos e o documentários. É usual. É assim com mulheres que noticiam um estupro (“você tinha bebido?, “que roupa vestia?”, como se houvesse qualquer desculpa ou atenuante pra tal violência), é assim com quem denuncia racismo (“você não entendeu errado?”, “não era uma piada?”), é assim com casos de homofobia (“não se pode mais nem brincar”, “isso não é coisa de deus” etc. etc. etc.), é assim com o machismo e por aí vai. A vítima é colocada em dúvida, porque provas são bem difíceis de colher em muitos desses casos.
Por isso, o diretor não tentou se debruçar em qualquer investigação. Pra ele, o importante era mostrar que a vítima fica desestabilizada, abalada, machucada, dolorida, impregnada pelo abuso por muito tempo. É preciso um trabalho de anos e anos pra tentar entender o que se passou. Os reflexos duram pra vida inteira. É preciso ajuda profissional pra compreender. E compreensão de familiares e amigos. Além disso, apoio da sociedade.
Safechuck e Robson estão sendo atacados, assim como o diretor, pelo o que disseram e passaram. Um site foi criado pra listar dezenas de “provas” de que os três manipularam informações contra Michael Jackson (se quiser checar o doentio esforço, é só clicar aqui). Os dois abusados são chamados de “mentirosos confessos”.
A hashtag #mjinnocent subiu como um foguete no Twitter. A fúria dos fãs está só começando, alimentada por teorias da conspiração. A família de Jackson resolveu processar a HBO em cem milhões de dólares. A alegação é que Michael Jackson foi inocentado de todas as acusações que enfrentou nos tribunais. O próprio Robson tentou processar o cantor (depois de morto), mas a Justiça não aceitou o caso. O problema é que a família do cantor nunca refutou com veemência as acusações, sempre dizendo que aquelas famílias e os garotos queriam mesmo era dinheiro e fama.
Ou, como escreve Megan Garber, na The Atlantic, “é muito mais fácil, afinal, não acreditar. É intensamente preferível viver em um mundo onde Michael Jackson, o criador da terra e o defensor e o artista e o gênio, é inocente (e não um predador sexual). É muito mais simples, quando ‘Billie Jean’ surge, com as batidas que você conhece até os ossos, pra dançar com alegre abandono, e cantar junto à voz profundamente conhecida: “e minha mãe sempre me disse, tenha cuidado com quem você ama / E tenha cuidado com o que você faz, porque a mentira se torna a verdade”.
O mesmo vale pra todos aqueles artistas já acusados de algo tenebroso (embora os andamentos de cada caso tenham diferentes estágios e profundidades): R. Kelly (abuso sexual e pedofilia), Nick Carter (Backstreet Boys, estupro), Ed Westwick (estupro), Kevin Spacey (abuso sexual), Harvey Weinstein (produtor, abuso sexual e estupro), John Lennon (violência contra a mulher), Elvis Presley (sexo com menores), Mel Gibson (violência contra a mulher), Chris Brown (violência contra a mulher), Woody Allen (estupro e abuso de menores), Roman Polanski (estupro e abuso de menores), Bill Cosby (estupros), Charlie Sheen (violência contra a mulher), David Bowie (sexo com menores e abuso psicológico), Michael Gira (Swans, estupro) e muitos outros.
A questão que faz peso na balança é: por que quando nossos ídolos cometem atos recrimináveis moral, ética e legalmente arrumamos argumentos pra dizer que isso pouco importa pra manchar sua obra, mas quando eles produzem atos edificantes pra sociedade, dizemos que eles ficam “ainda melhores”?
Garber conclui dizendo que podemos tratas as celebridades como forças celestes, como estrelas, “mas a celebridade também é, como Jackson, uma espécie de infra-estrutura: um fato arquitetônico em torno do qual outras verdades, seja arte, talento, financiamento ou os anseios da alma humana, se reunirão. Culturas antigas olhavam pras estrelas em busca de orientação; nós, habitantes do mundo moderno, fazemos o mesmo. O que ainda não descobrimos é o que fazer quando o chão começa a ruir, o céu começa a tremer e, ao nosso redor, as estrelas começam a cair”.