Há tempos falo isso, como um editorial, mas não custa repetir, mesmo que vários colegas de teclados se sintam ofendidos – não é a intenção, já que cada um constrói seus próprios parâmetros de ética e legalidade, como veremos.
O Floga-se não pede credenciamento pra cobrir shows. É bizarro falar isso, mas há uma lógica. Começo por humildemente saber o lugar do site no enorme emaranhado de publicações culturais que existe na web. Somos pequenos o suficiente pra saber que a negativa é quase uma certeza, mas principalmente por achar que é o promotor do evento que sabe e conhece – ou deveria saber e conhecer – os veículos que interessam pra promoção, divulgação e pra cobrir seu evento.
A grosso modo, entendemos o fato do Floga-se não ser lembrado na hora de distribuir ou aprovar credenciais. Não somos populares o suficiente e a bem da verdade, nesse quesito específico, não importa muito, porque iremos de qualquer maneira, se assim o desejarmos.
Por outro lado, não negamos o convite quando nos oferecem. Se nos querem no evento, se querem nossa opinião sobre aquele evento, é claro que estaremos lá – e falaremos o que achamos dele, descendo a lenha ou elogiando, sem rabo preso, o que já resultou em algumas broncas bizarras de promotor que veio tirar satisfação porque falamos mal de um espetáculo que ele “nos colocou lá dentro como parceiro”. Não adianta explicar que essa parceria não faz parte do nosso cardápio.
Se de fato achamos que um evento é de interesse de nossos leitores, vamos lá e compramos o ingresso pra fazer a cobertura, “à paisana”. O interesse é nosso, não do promotor do evento. Então, não pedimos credenciamento nunca.
Sabemos que tirando a grande mídia, que invariavelmente sempre é chamada pra cobrir tais eventos, e por isso não tem interesse de ficar puxando saco de produtor cultural, e um ou outro site/blogue (um bom exemplo aqui e outro aqui), todas as publicações online de música fazem de tudo pra não cuspir no prato que comem e saem elogiando a torto e a direito, sem critério, só pra agradar o “credenciador”. Isso obviamente tira a imparcialidade e não é saudável ao leitor. É a publicação querendo afagar e fazendo as vezes de parceiro do promotor e não da verdade.
Mas é assim: tem gente que acha isso correto. Eu não acho muito honesto.
Esse é um dos principais motivos pelo qual você não lerá aqui uma resenha crítica do Lollapalooza Brasil 2013 (como fizemos no ano passado e como já fizemos numa edição de Chicago) é que, embora tivéssemos total interesse de cobrir o evento – e não pedimos credenciamento – não conseguimos ingresso pra assistir. Um fracasso lastimável da nossa parte.
Não poderia fazer uma resenha pelo o que vi na tevê, porque obviamente não é a mesma coisa do que in loco. Soa um tanto falso, embora me divirta um bocado com quem faz e não recrimino nem um pouco.
Sei que o festival teve lá seus problemas. O Lollapalooza 2013 foi um acinte em vários aspectos, como a fila vil pra retirada de ingressos de quem os comprou pela Internet. Ou as filas pra comprar ingresso na hora (voltaremos isso mais a frente). Falaram das enormes filas pros caixas e pra comprar cerveja; das imensas filas pro banheiro feminino, das falhas e vazamento de som de um palco pra outro; e por aí vai. Coisas facílimas de se arrumar pro evento de 2014.
Falaram da lama. Ora, a lama. Que se dane a lama. É claro que todo mundo gosta de conforto, mas é um festival e lama tem em um bocado dos grandes festivais do mundo, em especial na Inglaterra. Entretanto, irritou a organização ficar a toda hora nas redes sociais tentando vender que “não existe festival de rock sem lama”. A lama incomodou, pelo visto, mais a organização do que o público. Faça ano que vem sem lama, sem chuva, num local asséptico, se é que isso é possível.
A escalação, como se dá na maioria dos festivais do mundo, teve seus acertos e seus escorregões, mas isso fica bastante a critério do freguês. Dá pra dizer que o Black Keys foi uma frustração como banda principal? Dá, mas há relatos pra todos os gostos, de “um lixo” a “o show do ano”. Pela tevê, foi modorrento, quase sonolento. Só que pela tevê não vale muito.
Não conseguir entrar no festival não teve nada a ver com a organização do Lollapalooza. Foi uma falha de avaliação nossa. Achávamos que comprar na hora seria fácil e – veja a roleta-russa – mais barato. Mas o sucesso do festival (52 mil pagantes no primeiro dia, 29 de março de 2013; 55 mil no segundo; e 60 mil no terceiro; um déficit de 13 mil ingressos não vendidos pra carga diária proposta de 60 mil) jogou contra. O ingresso se valorizou ao invés de ficar mais acessível.
Sim, como somos nós que pagamos pra entrar nos eventos que queremos cobrir e achamos correto que seja assim, é bom que o custo seja menos impactante.
Quem deixou pra comprar o ingresso em cima da hora se deu mal, muito mal: enfrentou filas de duas, três, quatro horas nas três bilheterias (no segundo dia, apenas duas) montadas no Jockey Club de São Paulo. Muita gente desistiu. Os cambistas deitaram e rolaram, fizeram seus preços em vista dessas filas. Mas é um risco de quem quer comprar na hora, um lance de mercado puro e simples (o que é mais procurado tem valor mais alto), não tem nada a ver com a organização. Ou tem, se as vendas na hora fossem mais eficientes.
Mas as coisas seriam mais fáceis se o brasileiro não fosse… brasileiro.
O orgulho de muita gente de conseguir dar um jeitinho em tudo na vida tem definido muitas das dificuldades descritas aqui. O caso das filas foi atroz. Quem ficasse poucos minutos perto das bilheterias podia perceber como funciona a lógica do brasileiro. Ali, os mais “espertos” furavam fila na cara-dura, ou pagavam pros “organizadores” oficiais da fila pra passar a frente, ou tão escroto quanto, chegavam a pagar pra quem estava na vez de comprar pra que comprassem pra eles também. Isso atrasava sobremaneira um processo que já era moroso.
O brasileiro adora sentir que levou vantagem em alguma coisa. Ou que é superior aos outros por qualquer besteira. Listas, salas, áreas VIPs são exemplos disso. Mas nada é tão aviltante, no caso dos eventos culturais, do que as carteirinhas de estudantes “arranjadas”.
É sabido que nesse negócio da meia-entrada cada um pensa apenas em si: do político ao empresário, do estudante ao falso-estudante. Ninguém se preocupa com os efeitos colaterais que impulsionam pro inviável os preços dos ingressos dos eventos.
Veja o caso do Lollapalooza Brasil. O ingresso cheio (por dia) na edição 2013 custou 350 reais, sem contar as bizarras “taxas de conveniência”. A meia-entrada estava 175 reais. Entende-se perfeitamente que 175 reais é “um preço decente” pra cada dia do evento, por conta da lógica da organizadora. Noventa por cento (ou oitenta por cento, como anunciou a organizadora, segundo números de 2012) compram com documentos que dão direito ao benefício.
Com 180 mil ingressos disponíveis (60 mil por dia), isso quer dizer que entre 18 mil e 36 mil (10% e 20%), incluindo aí as cortesias, imagina-se, são de pessoas que não produziram um documento que lhes permitisse pagar meia-entrada. Paga-se assim 350 reais. O dobro do “preço decente”. E o preço é 350 reais porque a organização acha que seu produto diário vale 350 reais? Não, ela sabe que vale 175 reais (ou perto disso), mas tem que colocar o valor de face a 350 porque se o valor de face fosse 175, venderia de 80% a 90% dos ingressos a 87,5 reais e a conta provavelmente teria impossibilidades enormes de fechar.
Permite-se pensar que esses 20% (ou 10%) são pessoas que não fabricaram um documento que lhes permitisse o acesso pelo preço “decente” ou imaginado como correto pela própria organização. São pessoas honestas? Não vou arriscar tal assertiva, mas são elas que pagam por um preço dobrado e totalmente fora da realidade. Pagam por um princípio de honestidade que o mundo de eventos culturais simplesmente esnoba – e, por outra, até acha risível.
Nesse país, ser honesto é pior do que ser desonesto. É algo que se aprende de berço. E fabricar um documento desses é desonestidade, sim, mas quem o faz, o faz porque todo mundo faz e não quer pagar por esse todo mundo – não quer pagar os 350 reais. Eu também não quero, mas me recuso a fazer tal carteirinha se não sou estudante há trocentos anos. Talvez eu devesse fazer um curso de mecânica de liquidificadores pra ver se posso ter esse direito.
Mesmo como estudante de mecânica de liquidificadores também não me parece correto furar filas ou pagar pra furar filas (pra conseguir exercer meu “direito” à meia-entrada). Parece que o brasileiro médio pensa de maneira diferente. E o Lollapalooza, como tantos outros eventos, fazem o brasileiro destruir seus princípios de honestidade.
Dessa forma, não entrei no Lollapalooza Brasil 2013. É claro que você, leitor fiel do Floga-se, não ficará sem uma crítica decente (“decente” igual a “isenta”) do evento. Há a grande imprensa e há os sites/blogues linkados acima. Recomendo a leitura do máximo de opiniões possível.
E da nossa parte, procuraremos evitar ao máximo que isso se repita, comprando os ingressos com antecedência, pra que você tenha, a nosso ver, a melhor cobertura do evento que você foi ou gostaria de ter ido.
A gente se recusa a destruir nossos princípios.
Sem comentários, pois essa resenha foi a primeira – e quem sabe a única – que foi no cerne da questão não só desse, mas de todos os eventos “de grande porte” feitos por aqui. Isso tudo num relato cru e vivido na pele; parabéns pela leitura quase que sociológica/antropológica do negócio todo.
Eu não sei se chamaria de desonesto burlar a meia-entrada. É ilegal, de fato, mas a lei é que não é justa.
Pagar o preço dobrado, por conta de uma obrigatoriedade da lei, quando não há nenhuma contrapartida pública sobre a questão da meia entrada num lugar que a gente já paga impostos bem altos é, no mínimo, compreensível.
Bom, acho que temos dois problemas bem visíveis nesse situação.
O primeiro é que a lei brasileira foi criada para auxiliar os “estudantes” mas, devido ao público alvo de determinados eventos, ela apenas complica a vida do organizador. Como dito no texto, é óbvio que um evento desse tamanho não teria sua contabilidade fechada se o valor do ingressos fosse tão baixo. Então, o sacrifício de alguns (os que pagam o valor cheio) é necessário para que a continuidade do festival se torne existente.
Alguns festivais até facilitam permitindo a compra de meia-entrada e fazem vista grossa na hora da comprovação, dando a chance de todos pagarem o valor “real”. E a institucionalização do jeitinho. Não é a melhor maneira, mas é uma possível de não prejudicar o público.
O segundo problema atravessa o que eu, brasileiro, legalista e cidadão cumpridor das leis, chamo de Complexo da Comodidade Incentivada e Impune. O brasileiro simplemente acredita que por a lei não ser justa, ele tem o direito (e alguns acreditam que o dever) de não respeita-la e ignora-la ao invés de batalhar pela mudança da mesma. Existem alternativas e nuances que poderiam ser aplicadas à legislação para que ela faça sentido e seja mais representativa e justa, mas é muito mais fácil “corrigir” o problema localmente e temporariamente do que forçar uma mudança, obviamente, mais complicada e duradoura.
Se você, brasileiro, acredita que é “compreensível” burlar a meia-entrada pois a lei é injusta, por favor, renuncie a sua cidadania e busque um pais onde os meios justificam os fins. A regulação do Estado não é a solução para tudo, muito menos para esse caso.
Xará, com esse dedo apontado para mim, lembre-se que tem outros três apontando para você. Espero que como cidadão exemplar que você seja, lembre-se de quem votou na última eleição, tenha uma constituição à disposição em casa, não jogue lixo na rua, não baixe mp3 pirata e etc.
Nem entendo como uma questão de meios e fins, pois sequer há roubo nessa história – pode ser que em casos diferentes de shows, a coisa mude de figura. Mas no caso dos festivais e shows, todo o público que paga ingresso pro evento paga o custo do Estado fazer propaganda de inclusão social, quando, na verdade, este não faz muita coisa.
lendo isso, lembrei dessacanção:
Agora é você contra a multidão
Mas não se assuste se não for tão fácil
Você vai ter que demonstrar
Vai ter que provar a diferença
E por enquanto daqui de cima
Vocês parecem todos iguais
Quem tenta ser diferente
Apenas fica igual a todo mundo
O modelo na TV é tão sedutor
Faz parecer que o que você é
Não vale tanto assim
Então você muda de cor
E pensa dessa vez você acertou
Pensa dessa vez você acertou
Mas que chato encontrar um vizinho
Vestido igual a você no elevador
Já vi em shows menores algo relativamente comum: “ingressos promocionais” onde quem comprar até a data x, compra com 50% de desconto. E nesse tipo de show só existem ingressos meia-entrada e com 50% de desconto, o que torna o preço justo para todos. Só não sou a favor do fim da Meia-entrada porque conhecendo as empresas brasileiras, provavelmente a maioria(cinemas principalmente)iria colocar o preço duplicado como real…
Concordo 100% com o Eduardo Azeredo, e com o texto do Floga-se!
Realmente, é o jeitinho brasileiro que faz o Brasil ser essa bagunça que é. Todo mundo quer levar a melhor sobre o outro.
Mas algumas situações (como é o caso da meia entrada) não tem a ver com jeitinho brasileiro, não tem a ver com burlar regras, e sim apenas aprender a viver num país onde o sistema permite que sejamos completamente explorados!
Quanto ao Lolla em si, ano passado achei bem tranquila a organização! Apenas para entrar que a fila era absurda, e eles abriram os portões com grande atraso!
Pelo visto esse ano foi mais complicado.. além de super caro. Não deu pra mim!
Qual é a dos festivais quererem dobrar o preço do ingresso a cada ano??? Que loucura isso. Loucura, loucura.
Sensacional e obrigatório esse texto para qualquer um que escreve sobre cultura. Parabéns!
Matou a pau! Já me considero um leitor seu de alguma data, antes e após enveredar com esse lance de blog também. Mas este foi campeão. Texto irretocável Fernando. Porra do caralho. Queria ter escrito isso, sério.
Abs.
[…] E uma aberração maior vem de uma estranha “taxa de retirada”. O cidadão paga R$ 10,00 pra ele mesmo enfrentar uma fila e retirar o ingresso na bilheteria do local do festival. Como vimos no Lollapalooza Brasil 2013, não é uma fila qualquer. […]
[…] E uma aberração maior vem de uma estranha “taxa de retirada”. O cidadão paga R$ 10,00 pra ele mesmo enfrentar uma fila e retirar o ingresso na bilheteria do local do festival. Como vimos no Lollapalooza Brasil 2013, não é uma fila qualquer. […]
[…] estruturalmente. O Lollapalooza Brasil, recém-criado, já cambaleia com a péssima organização (veja aqui e aqui) É de se pensar se precisamos de algo com esse […]
Fui nos antigos pra nunca mais, nunca vi tanta gente sendo roubada