PENSE OU DANCE: OS ÍNDIOS, O SOFÁ, A PATRULHA E A CULPA

“A Justiça Federal em São Paulo aceitou outra denúncia contra o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou o Departamento de Operações de Defesa Interna-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de São Paulo no começo dos anos 1970 (…) o coronel reformado é acusado, juntamente com os delegados Alcides Singillo e Carlos Alberto Augusto, ambos da Polícia Civil, de sequestrar e torturar o corretor de valores Edgar de Aquino Duarte, em junho de 1971”, a matéria é recente, de 23 de outubro de 2012.

Que bom que a justiça está capturando esses pulhas. Uma ferida na história do Brasil que ainda sangra aos poucos, com esses torturadores à solta e muitas pessoas sem poder enterrar seus familiares.

“O Brasil é o país da impunidade. Mas também a quarta nação que mais prende no mundo, com um total de 514.582 detentos. Como conciliar esses dois fenômenos? Uma das afirmações é mentirosa? Não. Qualquer discussão sobre população prisional no país tem que começar por essa aparente contradição. Caso contrário, como falar em ‘desafogar o sistema carcerário’ se muitos acham que não estamos prendendo o suficiente? A questão é entender quem está sendo detido. E quem não está.

“O crime que mais prende hoje é o tráfico de drogas. São mais de 125 mil pessoas. Pesquisas bastante sérias nos mostram que pelo menos 60% delas são réus primários, que estavam desarmados e não têm qualquer vínculo com o crime organizado. Muitos são apenas usuários. Ao serem presos, só alimentam a cadeia da criminalidade. Precisamos retirar definitivamente do sistema penal os usuários de drogas”.

Os dois parágrafos acima são de um texto do Banco de Injustiças, que ainda analisa os roubos e furtos nesse cenário (leia na íntegra) que contribui pra aumentar a criminalidade.

Sobre as drogas e suas injustiças, eis uma página com vários exemplo.

Os trechos são casos clássicos de como a sociedade encara seus problemas: nenhum dos dois textos circula com voracidade pelas redes sociais. Tortura, história, drogas, sistema judiciário e prisional, violência contra a mulher, violência policial e abuso de poder, corrupção, machismo, racismo, má distribuição de renda, todos esses são assuntos que deveriam tirar o sono de qualquer cidadão e de qualquer sociedade minimamente preocupada com Justiça Social e o bem-estar igualitário de todos.

Mas são problemas que, parecem, não nos dizem respeito. Perto de um cachorro abandonado pelo seu dono, as redes sociais tratam essas mazelas como males menores e até como parte inerente da sociedade: “ah, isso sempre vai existir, então pra quê se preocupar?”.

É algo a se pensar. Cachorros abandonados, gatos maltratados, bichos de estimação sem cuidados básicos nos tocam muito mais o emocional do que um ser humano jogado numa cela suja, sem chance de julgamento justo ou de um tratamento digno; ou muito mais do que uma mulher que apanha do marido bêbado todos os dias.

Leis pra todos os casos existem – e condenações e correções justas também. Mas as leis não são aplicadas e não são iguais pra todos, e as correções, como no caso do coronel que abre este texto, são exceções.

Em tempos de redes sociais em que o já aclamado “ativismo de sofá” toma conta das causas nobres (já tratei do assunto aqui, nesse texto), muita gente tem a sensação do dever cumprido simplesmente compartilhando uma notícia de algo que considera uma “injustiça”. O fato de espalhar a ideia o faz sentir-se bem, é como dar adeus à culpa de não fazer nada pra sanar tal “injustiça”.

Curiosamente, preciso admitir que esses sujeitos não estão totalmente errados. Mesmo sem checar a informação, transformando em meme rasteiro e fugaz tal assunto, a pessoa contribui minimamente ao gerar atenção ao fato. As pessoas competentes, nos “ministérios públicos da vida”, a partir daí, da repercussão do caso, com a “pressão popular”, podem tomar providências.

A expiação da culpa, com um simples gesto de compartilhar, que toma da pessoa alguns segundos de ler a manchete (porque a pessoa dificilmente lerá a matéria inteira que está no link ou procurará outras matérias que confrontem o assunto) funciona pra ela, mas pode causar problemas inúmeros, ao se compartilhar inverdades, incertezas, ao se cometer outras injustiças. Nas redes sociais, todos são bem intencionados, mas são todos preguiçosos, assumindo a posição de voyeur dos problemas alheios. A distância é cômoda e nossa cidadania é preguiçosa.

Entretanto, pior do que o cidadão que acredita estar contribuindo no seu ativismo de sofá, na sua preguiçosa demonstração de cidadania, é aquele que o patrulha – é aquele que esquecendo-se do fato em questão, pesquisa (sempre na Internet, sem sair a campo, claro) notícias e causos que desmintam e desmereçam o ativista preguiçoso.

E aí cria-se um cenário curioso: é o “alienado” contra o “pseudo-inteirado”, que também é um “alienado”, mas com menos preguiça (porque leu a matéria do link e foi atrás de outras). Mas a causa em si, bem, essa que se dane, que outra pessoa resolva o problema.

Entretanto, o fio da meada se rompe quando eu afirmo o que afirmo acima, chamando essas pessoas de “alienadas”. Que direito tenho eu, sem conhecê-las de fato? É um padrão na Internet, parece-me claro, mas imaginar o mesmo padrão pra todas e cada uma das pessoas é um erro. Pois é justamente assim que atuam os patrulheiros bom-moços: também não resolvem nada, apenas apontam erros.

Tais pessoas podem ser preguiçosas. Podem ser alienadas. Mas elas podem ser isso nessa ou naquela questão – em outras questões podem fazer mais, muito mais, do que o patrulheiro chato de suas atitudes virtuais. Elas acreditam que ao compartilhar estão contribuindo de alguma forma, ou até mesmo expiando uma culpa por não poderem fazer nada além daquilo.

O ideal seria que ninguém se incomodasse com isso. O ideal seria que as pessoas se incomodassem com os assuntos-objeto de discussão, com as injustiças, enfim – e procurassem fazer algo a respeito.

Mas as pessoas são diferentes. Cada uma atua diante das injustiças de uma forma distinta. Marchar contra a corrupção, a favor da maconha, contra o machismo, são causas mais nobres pra elas, a ponto de saírem às ruas – e a disposição dessa pessoas é maior pra sair de casa do que outras, em cada uma dessas questões.

A corrupção continua aí, firme e forte, a maconha segue proibida e o machismo é tão presente quanto o oxigênio. Dizer, então, que essas pessoas que saíram às ruas mudaram algo não seria tão errôneo quanto dizer que aquelas que curtiram o evento no Facebook só pra marcar posição são idiotas e alienadas.

Mas antes que me acusem de ficar em cima do muro, batendo e assoprando nos ativistas de sofá, vale dizer que desprezo essa pretensa intelectualidade moderna das redes sociais. Não gosto dos ativistas de sofá, mas gosto menos ainda de patrulhamento, porque todos se esquecem de resolver o problema ou deixam o problema de lado. No fim das contas, é um Fla-Flu.

Foi interessante notar quando do capítulo final de uma recente novela de muito sucesso da Rede Globo. Sexta-feira, data do epílogo, as redes sociais foram tomadas por três grupos: os que gostam realmente de novela (o que não tem problema algum); os que gostam de novela porque parece ser “cool” gostar de novela, contra os, digamos, intelectuais, que odeiam; e os tais “intelectuais”, que bradam contra a mídia opressora e manipuladora, que usa as novelas pra “alienar o povão” (a que cria a novela manipula de outra forma).

O que fazem ou fizeram esses três grupos? Coisa alguma, além de tuitar e feicebucar discutindo “o nada”. Mídia opressora e manipuladora? Ela atuou igualzinha, aparentemente, desde sempre, principalmente nas eleições, como sabemos e continuamos sendo lembrados nas redes sociais. O que se faz contra essa “mídia opressora”? Nada, além de se tuitar e feicebucar – e bocejar.


Tira magistral do Malvados sobre o assunto

Como ver as redes sociais como um troço sério é algo que o mercado precisa aprender, mas principalmente os patrulhadores, que precisam relaxar e tomar as opiniões dos ativistas de sofá com menos peso. Há coisas, como se vê nos dois exemplos que abrem esse “Pense Ou Dance”, mais importantes pra se patrulhar.

E o caso dos índios…? Ora o caso dos índios… A importância da matéria é grande, desde 1500, e continuava importante no começo das redes sociais, seguia de enorme importância quando aquele cachorrinho foi espancado pela dona, e permanece importante agora, amanhã e semana que vem, quando o meme terá passado e as pessoas se sentirão na obrigação de se indignar com outras injustiças.

Observar o mundo pelas telas do computador causa distorções – e, aos preguiçosos que continuarão a ver o mundo por essa janela, aprender a interpretar textos nunca é demais (mais uma vez, o “caso dos índios kaiowás”). Não dá pra saber exatamente qual é o humor das redes sociais – ou se a indignação ali se transporta pra vida real – sabe-se apenas que é um humor extremamente conservador, medroso e volúvel.

Bem sabe Celso Russomano, candidato a prefeito de São Paulo nas eleições 2012, que sentiu a força das redes sociais, ao ser assassinado politicamente ali. Porém, é de se questionar o quanto desse furor contra o político não era algo localizado e o quanto isso impactou na sua abrupta queda final, tirando-o do segundo turno. Ninguém sabe ao certo.

Sabe-se que há uma força nas redes sociais. Mas, por via das dúvidas, enquanto não se determina ao certo o que essa ferramenta pode fazer pelo “mundo real”, deixe as pessoas se posicionarem moral, social e politicamente ali da forma que desejarem. Apenas concorde ou discorde.

Ponderadamente, resta enfim dizer que se sua indignação tem prazo de validade e serve apenas como um adeus à culpa de não fazer rigorosamente nada pra tornar o mundo um lugar mais decente, tente melhorar o mundo naquilo que faz de melhor, seja lá o que for – de preferência, na “vida real”.

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