PENSE OU DANCE: OURO SUBTERRÂNEO

Nos anos 1980, espantava ver aquele formigueiro de gente, transformada em sub-gente, carregando sacos pesados de terra e esperança, pelas encostas de uma grande cratera feita pela ganância humana. No sudeste do Pará, está lá até hoje a marca da ação. A Serra Pelada chegou a ter quinhentos metros de profundidade e cinquenta e oito quilômetros quadrados de comprimento. Imagine isso: um prédio de cento e sessenta andares, numa área onde caberiam quase quatrocentos Maracanãs.

A procura pelo ouro levou cerca de oitenta mil pessoas ao local, sonhando com uma riqueza que o tal “milagre econômico” vendido nas manchetes da ditadura militar brasileira não lhes alcançava. Dali, saíram cerca de trinta toneladas de ouro, até 1992. É pouco, perto das quase quatrocentas toneladas de metais preciosos que os geólogos afirmam ainda existir na região.

O grande buraco de Serra Pelada virou lago, a terra voltou pras mãos da Vale do Rio Doce, mas o garimpo continua, agora de forma organizada e nada desumana.

O fascínio que o ouro tem nos humanos proporciona histórias de total insanidade, como as milhares que aconteceram em Serra Pelada. Mas é porque o ser humano também gosta de se aventurar nas descobertas da vida, na busca por riqueza, na batalha insensata por poder, que tais histórias acontecem.

Por outro lado, o brasileiro ainda não aprendeu a revirar seus baús. Se esforça pra esquecer passagens vergonhosas do passado, sem aprender com ele. Idiotas que pedem a volta do regime militar, da ditadura, são exemplos de como alguns preferem não tirar lição nenhuma do passado. E nem do presente. Não querem aprender.

A música brasileira, por sua vez, faz um esforço pra manter vivas certas culturas e passagens da nossa história. Só que é preciso cavocar os subterrâneos dela pra descobrir um ouro escondido dos olhos da preguiçosa grande mídia. Sem garimpar, não se acha, não é possível enxergar um movimento que vem abrilhantando notas musicais, uma mistura de estrangeirismos com identidades e culturas brasileiras.

Há um movimento não organizado, meio caótico, embora girando em torno de poucas pessoas, que foi unindo (assim mesmo, nesse sentido de ser “aos poucos”) uma forma de MPB, na doçura, no molejo, na melodia, com a MTB, a Música Torta Brasileira, que absorve guitarras barulhentas e distorcidas de, por exemplo, um Sonic Youth, e ruídos agressivos, batidas industrial, experimentos sônicos e liberdade do free jazz.

É um movimento, por assim dizer, que já está acontecendo. Não tem nome, não tem manchete. Não tem um líder, não tem um disco-chave. É natural.

Há pepitas apreciadas já pra além dos subterrâneos, como o Metá Metá, o Satanique Samba Trio, o Passo Torto… Cavocando novas possibilidades e misturando estilos, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e, principalmente, o pessoal da Quintavant e Audio Rebel, do Rio de Janeiro, foram moldando uma forma de musicar MPB com MTB, sem ser intencional. Era e é apenas uma necessidade de unir influências, recursos e gostos pessoais.

Veio a voz belíssima de Juçara Marçal; e seu “Encarnado”, de 2014, é a prova máxima de que a “fórmula” reluzia – uma sonoridade um tanto viva já em 2008, com “Padê”, parceria dela com Dinucci, sem ruídos.

Thiago França e Dinucci fizeram com o Sambanzo (“Etiópia”, 2012), uma mistura de jazz livre e ritmos africanos.

Não era o limite. Cadu Tenório e Márcio Bulk juntaram seus noises e poemas a vozes belíssimas e suaves de Alice Caymmi e Lívia Nestrovski, pra fazer “Banquete” (2014).

Em 2015, essa turma foi além. O Passo Torto veio se juntar a Ná Ozetti pra fazer “Thiago França”. Cadu Tenório e Juçara cometeram o incrível “Anganga”, misturando cantos de escravos a harsh noise. Juçara, Kiko e Thomas Harres fizeram um disco só de improvisação livre, “Abismu”. Negro Léo nos espanta com a amplitude de seu “Niños Heroes” (bem como de “Ilhas De Calor”, de 2014).

O leitor e ouvinte mais atento poderá dizer que não há novidade. O Rumo (de Ozetti) já fazia isso décadas atrás. Mas essa é a questão. Uma tão impressionante mistura não pode ser uma exceção. Ao ouvir o brilhante disco de Elza Soares, “A Mulher Do Fim Do Mundo” (2015), é de se perguntar: por que nunca fizeram antes? E se fizeram, por que não fazem com mais frequência?

Pois agora parece que estão fazendo. Dinucci, Rodrigo Campos e Rômulo Fróes estão por trás dessa preciosidade que Elza gravou. Há, como se nota, uma recorrência.

Cadu Tenório, já com seu Sobre A Máquina esboçava essa inquietude. Faltava a voz – ou as vozes. Dinucci (des)afina sua guitarra a esse serviço. Thiago França usa seus pulmões pra soprar notas febris. Todos se ajustam pra trazer a música negra, brasileira, enraizada da nossa história, pra ouvidos acostumados a estrangeirismos.

A soma MTB + MPB fez surgir algo “novo”, por assim dizer. Ou se requentou algo que fervilhava aqui e acolá, desde os anos 1970. Não importa: o agora é de um brilho e de uma excitação sem comparações na música atual.

E essa música está no subterrâneo. Deveria estar nos SESCs, nos festivais, nos grandes e bem remunerados palcos. Deveria ter as mesmas palmas que merecem a mais pop da músicas radiofônicas. Não tem, porque cabe também ao ouvinte garimpar, cavocar, fuçar, se esforçar pra achar tais pepitas.

Aqui, há ouro. Uma preciosidade cultural, seja de exercício, seja comercial, seja de experimentação, seja acadêmica.

Esses artistas fazem mais pela música brasileira (a torta, a infectada por estrangerismos, a negra, a histórica, a esquecida) do que qualquer outro na atualidade. Eles são os operários desse garimpo de possibilidades, que, tomara, seja inesgotável. Que, tomara, inspire outros. Que, tomara, não vire um fosso de preciosidades alagado e esquecido na história.

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