PENSE OU DANCE: POR QUE SHOWS SÃO SUPERESTIMADOS HOJE EM DIA?

Esse é um assunto um tanto polêmico. E na coluna “Pense Ou Dance”, não fugimos de embates, ainda que polêmicos. Eis que durante a gravação da edição 42 do nosso podcast O Resto É Ruído, Pedro Oliveira, idealizador do projeto I Buried Paul, um dos preferidos aqui da casa, levantou a bola sobre a diferença de música “ao vivo” e música “gravada”, pra ressaltar que shows são superestimados.

Ele havia escrito um artigo sobre isso (leia o original aqui). Curioso, pulei pras tais linhas. No cerne, ele diz que a música gravada está matando a música “ao vivo”: “acredito que tem muito a ver com o que nós, enquanto público, esperamos dos artistas que amamos e seguimos, ou seja, que eles vão reproduzir com perfeição aquilo que foi gravado anteriormente. E isso acontece em grande parte porque – e aí que eu acho que está o problema – nós tendemos a entender a música ‘gravada’ e a ‘ao vivo’ como essencialmente a mesma coisa, quando elas claramente não são; esperamos que os shows soem tão bons, tão precisos e tão claros quanto aquilo que ouvimos nos discos”.

É um pulo pra que o público entenda que o ingresso do show seja um contrato do que esse público espera que o artista represente em cima do palco: uma cópia quase fiel do que ouve em disco (ou no tocador de MP3).

Pedro analisa no texto abaixo, traduzido do original citado acima, os caminhos nos trouxeram a esse ponto: música como produto, shows como experiências, público como cliente.

Uma análise bem sóbria, em resumo, de como nós mesmos, a plateia, contribuímos pra esse quadro, que responde a pergunta do título. Um texto traduzido pelo próprio autor, exclusivamente pro Floga-se.

Sobre backing tracks e o porquê de um ingresso pra um show ser um produto tanto quanto o smartphone que você usa pra gravá-lo.
Por Pedro Oliveira

Música e performances ao vivo são assuntos difíceis de se lidar. Embora seja inevitável que a academia tente racionalizar e eventualmente divagar quando o assunto é a filosofia das nossas relações com a música, ainda assim isso acaba por gerar mais perguntas do que propriamente respondê-las. Será que é realmente possível compreender e estudar os porquês de nos sentirmos felizes ao, por exemplo, viajar milhares de quilômetros, passar horas a fio em pé e dormir em condições terríveis só pra poder ouvir um grupo de pessoas tocando num palco distante, por pouco mais de uma hora cada?

Embora por muitas vezes entendida como uma manifestação mais “primitiva” e “visceral” da música, seria talvez um tanto quanto romântico afirmar que uma performance ao vivo não é um produto, não mais do que um celular o é. Mas é bem possível – e plausível – argumentar que a idéia de se estar “comprando uma experiência” é bem mais explícita no formato de um ingresso do que em uma caixa (na maioria das vezes) preta com uma touchscreen. De todo modo, o que de fato são estas experiências? A quem elas falam? Com certeza tratam-se de experiências muito além do simples ouvir, ou talvez indo até mais longe, muito além da música em si. Estas são experiências que se completam no após, na memória e nas lembranças, por conta de uma infinidade de fatores subjetivos – tornando-se então o projeto destas experiências uma tarefa quase impossível.

Há mais ou menos dois anos, defendi minha tese de Mestrado em mídias digitais/design de interação na Hochschule für Künste (Universidade de Artes) de Bremen, na Alemanha. O tema da tese girou em torno da performance ao vivo na “era digital”: eu resolvi explorar e conjecturar sobre o porquê da maioria dos músicos e bandas, quando tocam ao vivo, se focarem em reproduzir algo ao invés de criar coisas novas. Eu defendo que isto não é necessariamente uma condição do artista, mas sim numa combinação de circunstâncias que coloca tanto músicos quanto público num beco sem saída. Minha explanação teórica foi bem digressiva, indo de MTV a Baudrillard, de Teoria de Mídia a Sunn O))), e como resultado eu acabei por desenvolver três protótipos de objetos que poderiam ser usados pra melhorar, hackear ou aumentar experiências individuais com música ao vivo. Se você tiver interesse, o texto com zilhões de referências e a documentação dos objetos está disponível neste link (em inglês).

Minha maior preocupação ao escrever e desenvolver este marco na minha vida de pesquisador e designer era de que o projeto, como um todo, tinha uma enorme chance de morrer dentro da academia, ou mesmo dentro do nicho específico de speculative design. Porém, ao iniciar minha pesquisa de doutorado, alguns fatos recentes chamaram minha atenção pra hipótese que talvez eu não estivesse tão louco assim quanto pensava ao decidir especular sobre estes assuntos todos.

O grande motivo pelo qual eu trouxe esta discussão à tona novamente foi por conta de um artigo escrito por J. Willgoose, que toca numa banda chamada “Public Service Broadcasting”. No texto ele discute se “backing tracks estariam matando a música ao vivo” (sic). Eu achei curioso que ele não tentou (bem, na verdade tentou um pouco, sim) excluir a si e sua banda desta equação, mas ao mesmo tempo achei que ele levantou questões muito parecidas com as que eu havia levantado na minha tese, o que me deixou feliz de ver que o tópico ainda era útil e não restrito à minha mente estranha. Enfim, comecemos com essa citação do texto, e a partir dela desenvolverei meu argumento:

“Hoje em dia, praticamente todo mundo (…) usa alguma forma de backing track ou click ao vivo (…) eu já vi bandas aparecerem pra shows relativamente grandes com o set todo já pré-configurado num laptop (…) pra daí tocar meia dúzia de notas num sintetizador ou guitarra enquanto o laptop faz o resto, ou o vocalista canta junto com 18 harmonias de vocal perfeitamente afinadas vindas do computador. Não seria isso um pouco de falcatrua? Será que as pessoas percebem o que está acontecendo? Elas se importam?”.

Minhas respostas pra estas duas últimas questões seriam “sim, elas sabem” e “não, elas não se importam”, respectivamente. E eu tenho algumas suspeitas do porquê as coisas são do jeito que são neste momento. Primeiro de tudo, independente do que o autor do texto diz, eu não concordo que a culpa seja exclusivamente do “fator lucrativo” ou, melhor colocado, do músico/artista em si. O autor argumenta de maneira muito certeira que, sim, tem a ver com o declínio das vendas de discos, mas mesmo assim eu ainda acho que o buraco é mais embaixo. Sendo bem direto, eu acredito que tem muito mais a ver com o que nós, enquanto público, esperamos dos artistas que amamos e seguimos, ou seja, que eles vão reproduzir com perfeição aquilo que foi gravado anteriormente.

E isso acontece em grande parte porque – e aí que eu acho que está o problema – nós tendemos a entender a música “gravada” e a “ao vivo” como essencialmente a mesma coisa, quando elas claramente não são. Parafraseando Brian Eno numa entrevista recente (da longa entrevista que pra revista mono.kultur magazine, Edição 34, pp. 11-12), seria mais ou menos como entender cinema e teatro como a mesma mídia, e exigir que atores de cinema constantemente reencenassem os filmes, por uma temporada inteira, num palco. Como a própria entrevistadora argumenta, isso seria não só extremamente mais difícil como também muito mais injusto do que preparar uma peça de teatro, e eu acho que é um exemplo bem tangível do que quero dizer.

Então por que o mesmo não se aplica à música ao vivo?

O ponto é que performances ao vivo estão sendo progressivamente “equalizadas” com performances gravadas, transformando as duas coisas na mesma experiência estética. E aí que mora o maior dos problemas: esperamos que os shows soem tão bons, tão precisos e tão claros quanto aquilo que ouvimos nos discos, que provavelmente levaram muito mais do que duas horas pra serem meticulosamente projetados. E pra que essas expectativas sejam atendidas, músicos e bandas hoje em dia precisam se apoiar mais no espetáculo do que na música. Não me leve a mal, não estou dizendo que isso é ruim, nem tampouco bom, nem que isso vale menos do que um show espontâneo ou que seja um produto (como eu argumentei ali em cima que um show é) de menor valor. O que eu quero dizer é que estas coisas não são iguais, não são as mesmas. Beyoncé ou Justin Timberlake podem ter bandas absurdamente talentosas e profissionais (e têm), mas eu duvido que a esmagadora maioria do público está lá pra ver os músicos. Ou mesmo as músicas, se você for analisar bem. O que realmente conta nestes casos é toda a experiência, o estar lá, o fator social e, bem, dado a onipresença de câmeras em smartphones e similares, a documentação como forma de status social.

E a questão é, como eu já discuti anteriormente, que a música hoje em dia é um produto. Música é algo úbiquo, cada vez mais presente na vida cotidiana, e, enquanto um produto e infelizmente por sê-lo, de valor de mercado cada vez menor. E pro mercado e pra indústria, isso não é nada bom. Então, quando a música deixa de ser o fator mais importante – porque você tem basicamente a mesma coisa em casa, numa situação definitivamente mais confortável – porque o artista colocaria um esforço tremendo em (re)produzir meticulosamente o que eles já fizeram antes, quando tudo isso está a um play de distância? Ver o artista, dividir o mesmo espaço com essa “persona” tão perfeitamente projetada é uma forma de afirmação social, e uma das maiores características da “atitude de fã”. E talvez seja o que mais importe, hoje em dia.

Então, por que eu acho que shows são superestimados? Não me entenda errado, eu ainda gasto bastante dinheiro com shows – menos do que gostaria, mais do que deveria – mas o ponto que eu quero levantar aqui é que talvez nós, enquanto público, colocamos pressão demais nos artistas. Isso principalmente porque aprendemos, através dos discos e da sua própria decadência enquanto produto, que nós temos o direito de fazê-lo – nós somos os clientes. E infelizmente somos, mas não dos artistas. Portanto, músicos e bandas não têm outra opção a não ser entender que “o cliente sempre tem razão” e dar o que ele quer ouvir, e eu honestamente (e romanticamente) acho que isso está bem distante do propósito da arte e da música. Eu adorei o que o Low fez no Festival Rock the Garden ano passado, mas a maioria dos seus fãs claramente não. E eu gostei bastante do que a Andrea Swensson escreveu em seu artigo sobre o caso, que “um ingresso não é um contrato”. E esse é o ponto.

Mas de todo modo, na minha tese eu não estava falando de negócios ou sobre a velha questão do que “quem deve o quê a quem”. Eu tentei passar por cima disto ao colocar parte da responsabilidade no público, simplesmente pelo fato que o resultado da nossa experiência com performances ao vivo vem do nosso próprio passado, vivências, expectativas e frustrações, e frequentemente estes aspectos pouco têm a ver com a música – como eu disse anteriormente.

Enquanto designer, é minha obrigação moral analisar estas experiências pra tentar entender o que eles significam pra cada um, ao invés de confiar em estatísticas. Em outras palavras, eu acredito fortemente e bato na tecla que os designers de hoje não devem entender pessoas como clientes (ou usuários, se preferir) mas sim como – vejam vocês – pessoas. Entender que graças à inclusão digital e maior acesso à tecnologia deixamos de ser consumidores passivos pra nos tornarmos criadores ativos (em cinco anos, a quantidade de pessoas ativamente gerando conteúdo na Internet aumentou mais de 60%; mais do que isso, o chamado “maker movement” encoraja pessoas a criar novos produtos, individuais e personalizados), e isso é uma grande mudança.

O porquê da música ao vivo não ter seguido este caminho ainda é um mistério pra mim. Eu tentei fazer um comentário nestas questões ao desenvolver objetos simples (não simplistas) que criticam e observam este aspecto – ou seja, que o público também é responsável pela criação de uma experiência significativa e pessoal em shows – mas eu gostaria de ver o que os músicos e empresários da área vão inventar de fazer no futuro próximo.

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Comentários

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Um comentário

  1. boa reflexão. me lembrou um show do ludovic que vi ainda adolescente. tocaram apenas três músicas e de resto discutiram com a plateia que queria ouvir covers de sex pistols.

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