PENSE OU DANCE: SERVIÇOS DE MÚSICA E AS VELHAS PRÁTICAS

“Costumava ser bem simples. As pessoas ouviam no rádio uma música que elas queriam, então iam até uma loja e compravam um disco físico que tinha essa música. Passadas algumas décadas, esse processo simples foi fragmentado numa diversidade de opções de consumo, da pirataria e arquivos digitais do iTunes ao serviço de música em tempo real (o streaming) do YouTube e outros. Infelizmente, a grande parte do consumo de hoje gera pouco dinheiro pros artistas. Trabalhamos duro pra consertar isso, e estamos orgulhosos de oferecer aos fãs de música um serviço capaz de gerar aos artistas os royalties que eles merecem”.

O parágrafo cheio de boas intenções acima é do serviço de música em tempo real Spotify, um dos gigantes do setor no mundo inteiro, em seu novo site, o “Spotify Artists”. Gigante, mas frágil ainda. E por ser frágil corrompe a lógica, como veremos a seguir, tentando nos convencer de que é diferente.

Por partes. O Spotify foi lançado em 2008 (lá se vão cinco anos) e até aqui, diz que pagou em torno de um bilhão de dólares em direitos, sendo metade disso só em 2013, mostrando um acréscimo substancial na distribuição da grana (números apenas pro mercado estadunidense). Parece muito dinheiro, mas não é, longe disso. É quase nada, na verdade: o serviço paga, em média, por execução de música, 0,007 dólares. Isso aí: menos de um centavo de dólar: apenas 70% de centavo de dólar por execução.

Não à toa, Thom Yorke, do Radiohead (e a despeito de outras intenções escusas – dizem que ele próprio vai lançar um serviço concorrente ao Spotify), mandou dizer no Twitter: “não se engane, os novos artistas que você descobrir no Spotify não serão pagos, mas os acionistas, esses vão rolar no dinheiro”.

A lógica que o Spotify corrompe é em dizer que pra pagar mais (embora não admita claramente que seja pouco) precisa ter mais assinantes. Parece óbvio, mas está equivocado, pra um sistema que se diz “inovador”. É um sistema cruel que se baseia numa prática antiga da indústria do disco: só se paga os direitos baseados na venda, então a não ser que você seja um medalhão da música, não vai ganhar o suficiente.

No caso do Spotify, a situação é pior. Porque a venda já foi feita, a obra do artista já está no catálogo do serviço, o direito de utilização já foi liberado pra empresa. E o Spotify, como qualquer serviço semelhante (RDio, Deezer etc.) usa como mote publicitário o volume de seu catálogo, “tantos milhões de músicas disponíveis”. Você vira assinante baseado na facilidade de acesso a esse catálogo, mas assina principalmente pelo catálogo, mesmo que jamais vá ouvir tudo. Ou seja, quanto mais músicas disponíveis, melhor pro ouvinte e melhor como argumento de venda do serviço.

A empresa afirma que fica apenas com 30% do dinheiro das assinaturas e da propaganda, repassa o resto aos detentores dos direitos das músicas, que nem sempre são os artistas, já que os acordos são com as gravadoras e elas continuam utilizando aquelas velhas práticas de repasse do tempo do vinil.

O Spotify chora as pitangas dizendo que tem “só” 24 milhões de assinantes em todo o mundo. Desses, 25%, ou seis milhões, pagam a mensalidade de 9,99 (seja em dólar, libra ou euro). O resto consome de “graça”, um “de graça” que é pago em interações com as peças publicitárias do site (algo que você faz bastante no YouTube, ao ver aqueles vídeos-propagandas obrigatórios antes dos vídeos que realmente quer ver).

Uma previsão um tanto ambiciosa diz que se o serviço chegar a 40 milhões de assinantes, os ganhos se tornam polpudos pro artista. A estimativa é que uma banda com um disco no top ten do Spotiy possa chegar a receber 734 mil dólares ao mês, comparado com os 145 mil dólares de hoje. Veja, uma banda no top ten por pelo menos um mês. Quantas conseguem isso?

Numa comparação, usando o mercado estadunidense como base, onde apenas 45% dos consumidores realmente pagam por música, o site mostra que uma bandeca indie pode chegar a ganhar por mês US$ 3.300, enquanto um disco indie de sucesso ganha US$ 76.000 e um grande hit mundial, tipo Madonna e Lady Gaga, US$ 425.000 ao mês. Os US$ 145.000 atuais do top ten no Spotify, dessa forma, até parecem um bom negócio. Não é.

O serviço diz que não paga nada “por execução”, que sua forma de remuneração tem muitas outras variáveis (incluindo a legislação de cada país e o contrato de cada artista com sua gravadora), de modo que chegar ao número de US$ 0,007 é uma falácia. Mas admite que mesmo após todas as variáveis, o número “por execução”, se utilizasse tal fator, fica entre US$ 0,006 e US$ 0,0084.

Os serviços de música em tempo real têm muitas virtudes. É uma plataforma recente, que oferece uma alternativa barata pro consumo de música. Atrai e faz com que aquele que baixa de graça na Internet ou que compra produtos piratas legalize seu consumo. É um enorme ganho ao mercado. Mas não é a solução como tenta nos vender o novo site do Spotify.

Apesar de louvável a prática de transparência a que se prestou – e que deveria ser seguida por concorrentes e empresários até de outras áreas, como de shows, principalmente no Brasil – há de se resguardar o ímpeto de observar tais serviços como “salvação” do mercado. Estão longe disso. São apenas mais uma alternativa e, como a história já nos mostrou diversas vezes, nem deve ser uma alternativa definitiva – deve haver uma data de validade pra sua importância, em vista de outros serviços mais eficazes que certamente devem pintar por aí, num futuro próximo.

Há de se esperar que algum jovem guri, numa garagem qualquer, esteja agora inventando algo que vai revolucionar nosso modo de consumir música. Ou ao menos criar mais uma alternativa. O futuro do consumo de música parece que será cada vez mais fracionado em alternativas, em opções ao consumidor. A pirataria vai perder não pra um grande agente, como tenta nos fazer crer o Spotify, mas pra uma gama de opções que diluirá o dinheiro do comprador, complementando as várias necessidades individuais de cada consumidor.

A pergunta de um milhão de dólares, porém, é: como fazer pras velhas práticas da indústria serem revertidas em um novo, justo e eficiente sistema de remuneração a quem de fato merece, o artista?

Por enquanto, ainda estamos no passado.

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Comentários

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5 comentários

  1. Como sempre alternativas que põe no rabo do artista, infelizmente cada dia que passa o artista tem menor relevância.

  2. O que é bem triste, Fred, porque esses serviços de música são uma boa solução pro ouvinte.

  3. Fernando, você escreveu um excelente texto, comentou sobre questões bem interessantes e tentarei pontuar algumas delas, antes disso, deixa eu esclarecer a conversa do twitter.

    “(…) solução definitiva”: solução é uma palavra muito vaga e o twitter não permitiu que você dissertasse sobre o(os) problema(s). Quando você falou em solução definitiva, eu, como um ouvinte, enxerguei sim uma solução para ouvir música, o streaming funciona e é uma boa experiencia, sempre achei chato ficar procurando links para baixar discos. Como músico, produtor, agente ou membro de um orgão fiscalizador de direitos autorais, eu pouco levei em consideração, afinal, não faço parte de nenhum destes grupos, mas, afirmei que o streaming reduz a pirataria, certo? Levando a conversa adiante, certamente chegaríamos a uma discussão com muitos dos pontos que você abordou no texto, então vamos lá…

    Achei o texto muito focado no Spotify, seria bacana explorar um pouco os outros serviços disponiveis e serviços similares que oferecem a possibilidade de ouvir música e rádio (TuneIN, IHeartRadio, etc) para fins de comparação, talvez.

    Usar o Thom Yorke como modelo de músico rebelde contra os serviços de streaming é algo bom e ruim, bom porque o Yorke em declarações recentes rasgou o verbo e disse que como músico é preciso lutar contra esse sistema e tentar de outra maneira se adaptar a essa nova geração; mas ruim porque o Yorke nunca foi um queridinho do mundo da música, é respeitado por muitos e odiados por tantos outros, não que eu esteja levando para o pessoal, mas sim para uma avaliação critica de seu trabalho, afinal, o In Rainbows é aiinda hoje, maravilhoso para mim, mas não para uma juventude que coloca Lady Gaga e demais artistas no top ten do Spotify, afinal, os tempos são outros. Yorke alega que os discos antigos são distribuídos de graça no Spotify, o que não é verdade, já que como você mesmo deixou claro, o Spotify paga os míseros $0,007 por execução, mas certamente as execuções (provavelmente poucas) não deveriam pagar o valor sentimental e profissional do In Rainbows, assim, a solução que ele encontrou foi cobrar dos fãs um valor justo sobre o album para poder ouvi-lo. Acho bacana a proposta, mas isso me lembra o sistema do iTunes que prefiro não misturar com os serviços de streaming atuais.

    Muitos artistas podem até criticar o serviço, mas talvez o top ten não tenha problema algum com as receitas geradas pelo spotify (não tenho certeza, é só achismo), vale o mesmo pensamento para aqueles artistas que devem receber um valor adequado de acordo com a quantidade de fãs ouvintes que possuem.

    Ok, ok… Eu entendo e reconheço, o que é pago aos demais artistas, principalmente os menos visados e aqueles que estão começando, não é um valor realmente “justo”, mas já parou para pensar que acontece o mesmo para qualquer coisa no mundo? Um jogador de um time da várzea não vai receber o mesmo que uma estrela de um time europeu, certo? Portanto, não adianta dizer que neste mundo injusto e capitalista as empresas de streaming devem rever a forma de distribuir os rendimentos, acho que os artistas estariam em situação pior se estes serviços não existissem, afinal, os gráficos nas vendas de discos “físicos” apontam sempre para baixo.

    Então concordo com você, o Spotify é apenas uma alternativa para o consumo de música, e esta alternativa não vai resolver 100% o problema da pirataria no mundo e nem tão pouco a situação atual dos artistas que vivem de música, porém, discordo quando argumenta que o Spotify usa das velhas práticas da indústria para lucrar em cima dos artistas, acho que muitos selos e gravadores usurpam o artista de forma mais cruel do que um serviço que acaba por ser indiretamente, um grande divulgador de seu trabalho (a função descobrir não tem preconceitos, eles já me indicaram artistas que nem EP possui), além de gerar alguma renda com as execuções.

    Se eu fosse um artista da música e quisesse fugir das velhas práticas da indústria, eu seria um artista independente, o caminho seria difícil, mas eu produziria, gravaria e venderia, longe dos grandes, afinal é meu talento que deve ser mostrado e não o selo de uma grande gravadora. Quanto aos serviços de streaming? Eu veria eles como aliados, afinal, se você olhar bem é uma grande prateleira que deixa seu produto exposto para um grande publico, talvez o produto não venda, mas ele vai estar lá disponível para, quem sabe, em algum momento chamar a atenção.

    Enfim, que bacana o texto, o importante mesmo é que esta temática seja explorada. Quem sabe no futuro consigamos chegar a uma ideia ou ação que seja uma nova e boa alternativa para os ouvintes e artistas? Abraço!

  4. Daniel, legal suas ponderações. Não entendi a comparação com um jogador de futebol. Arte tem outro valor, certo? (nem sempre palpável)

    Uma das coisas que mais me incomodam nesses serviços de música está nesse parágrafo: “a venda já foi feita, a obra do artista já está no catálogo do serviço, o direito de utilização já foi liberado pra empresa. E o Spotify, como qualquer serviço semelhante (RDio, Deezer etc.) usa como mote publicitário o volume de seu catálogo, ‘tantos milhões de músicas disponíveis’. Você vira assinante baseado na facilidade de acesso a esse catálogo, mas assina principalmente pelo catálogo, mesmo que jamais vá ouvir tudo. Ou seja, quanto mais músicas disponíveis, melhor pro ouvinte e melhor como argumento de venda do serviço”. Percebe a matreirice?

    Escolhi o Spotify justamente por ter aberto suas contas (em link inserido no meio do texto). Mas os outros serviços tratam da mesma forma os artistas. Porque todos esses serviços são empresas de tecnologia, não de música. A música é um meio pra eles ganharem uma grana boa, não o fim. Poderia ser, sei lá, futebol, não música. É uma plataforma de tecnologia pra explorar um mercado, que é o mercado de música. Os grandes incentivadores, investidores e apoiadores desses serviços, não por coincidência, são justamente as grandes gravadoras e artistas. São com eles que esses serviços têm negociações pesadas. O resto é pra compor catálogo e os serviços poderem vender que possuem “x milhões” de músicas no catálogo, exatamente o que vendem como diferencial entre si.

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