É difícil ficar calado diante do que aconteceu em Santa Maria, Rio Grande do Sul, na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. Mais de duzentas pessoas morreram numa boate, uma tragédia aterradora.
O incêndio, porém, expõe uma crueldade maior dos nossos tempos: a assimilação de certas tragédias distantes e constantes, diante de outras que batem à nossa porta.
Em Santa Maria morreu gente demais – e de uma vez só. Eram jovens, “com uma vida toda pela frente”, como se diz por aí. Eram na maioria universitários, que faz as pessoas acharem que eram todos “bem de vida”. Eram “bonitos”. Eram “do sul”, como se leu nas redes sociais, elevando o nível do preconceito.
Foi um evento brutal, desesperador, mas não só pelo enumerado no parágrafo acima. O horror se dá quando vemos uma tragédia, um assassinato em massa desses, acontecer tão perto. É a tragédia tangível pelas classes de maior alcance de consumo.
São pais, amigos, professores, namorados que vêem o terror acontecendo ali na sua casa, com os seus, nas suas vidas. Essa tangibilidade e proximidade aumentam o espanto, a dor, a insegurança.
Mas as tragédias sempre estiveram aí, acontecem ao nosso redor, perifericamente às vidas de quem tem maior poder aquisitivo. Eis um dos terrores dos nossos tempos: essas outras tragédias chocam, mas com uma força cada vez menor.
Veja o caso das enchentes de verão. É terrível a dor daquelas pessoas que perdem tudo, dos familiares às roupas e documentos.
Acontece todo ano. Os jornais de dezembro, janeiro e fevereiro inundam nossos olhos com tais vidas destruídas. Nos solidarizamos, entristecemos, entretanto esse sentimento diminui de intensidade ano após ano, porque está parecendo banal, corriqueiro. Fazemos doação aos flagelados e, em muitos caso, choramos nossos impostos desviados e mal gastos pelos governos. Mas a lágrima não vem.
Os governos… Eles são os culpados por tragédias como as das chuvas. Não há alguém em quem tacar pedras, cuspir e trancar na prisão. Como, salvo exceções (milhares são exceções em duas centenas de milhões de brasileiros), ninguém fica visitando morros, áreas de risco e moradias impróprias com a frequência que vai a um bar e uma boate, Santa Maria parece bem mais próxima e chocante.
Não se trata de uma questão de classes. Em Angra Dos Reis, em 2010, pessoas com contas bancárias recheadas perderam suas vidas por conta da chuva. Pode acontecer com ricos, pobres, brancos, pretos, ateus, religiosos e até políticos. A questão é como assimilamos essas tragédias.
A de Santa Maria, com o frescor na memória, é tão estúpida e tão próxima de nós, principalmente amantes da música e do universo pop, que poderia ter acontecido em qualquer boate do Rio de Janeiro ou São Paulo ou Beagá ou Brasília, cidades com boa concentração de casas de espetáculos, mas com qualidade de estrutura sabe-se lá de que porte.
Imagine uma pane elétrica numa daquelas casas “indie” da Rua Augusta. Duas bem famosas são verdadeiras caixas explosivas, com uma saída visível. Na hora do desespero, sem conhecimento das rotas de fuga (se é que há mais de uma), tal tragédia poderia se repetir.
Por conta da burocracia inflada e do jeito sempre espúrio do brasileiro resolver seus problemas, bem descritos aqui pelo Barcinski, e aqui pelo Sakamoto, é plausível questionar toda e qualquer casa com relação à sua segurança. Mas adianta?
Talvez, como em toda área de influência do Estado, adiante. Reclamando, se mobilizando… Mas, sim, isso dá um trabalho danado, e a maioria não sabe nem por onde começar – talvez por saber que não será ouvida, já que o Estado tem por histórico no Brasil se colocar acima do povo e não dar ouvidos. Nos acostumamos a ser assim.
Ninguém aposta que isso aconteça, mas esse assassinato em massa gaúcho poderia servir de inspiração aos governos pra mudar seus padrões de fiscalização, facilitando (e barateando) a entrega de alvarás e trabalhando junto com os empresários na qualificação da segurança dos locais. Desburocratizar é facilitar e traduz-se em economia pra empresários e governos.
E muitos dizem que se um idiota não resolvesse fazer show com pirotecnia num local fechado, nada disso teria acontecido. É difícil discordar de tal afirmação. Mas um curto-circuito também poderia produzir o mesmo efeito. É assassinato da mesma forma, se a casa, como de praxe, mantém uma rota de evacuação apenas (e dificultada, pra que ninguém saia sem pagar), superlota seu espaço, não treina sua equipe, não faz manutenção na rede elétrica, e eventualmente consegue suas licenças à base de corrupção.
Que esse assassinato em massa ocorrido em Santa Maria sirva de exemplo e faça os governos se mexerem em prol da desburocratização, da não-corrupção e da fiscalização efetiva. Sobre as leis existentes os especialistas dizem que são ótimas, só não são cumpridas.
Ninguém quer imaginar um quadro em que boates pegando fogo e centenas de pessoas morrendo se torne banal, como tem ocorrido com as chuvas, as chacinas nas periferias das grandes cidades e os tiroteios nas escolas estadunidenses, por exemplo.
Aí, vale lembrar Nelson Rodrigues alfinetando aqueles que ele chamava de “idiotas da objetividade”, que tinham banido os pontos de exclamação das manchetes dos jornais (Geneton Moraes Neto tem um causo bacana sobre isso, que lá pelas tantas diz sobre os jornais, usando Jorge Luis Borges: “tudo vira miudeza, tudo é efêmero – mas, no fim das contas, pelo menos uma lembrança remota dos fatos se salva, na superfície plana, frágil e retangular destes museus de papel – os velhos jornais armazenados em bibliotecas”).
Porque toda morte merece lágrimas, um histórico, um legado, um motivo. E pontos de exclamação como os deste texto.
– arrasou é isso ai , pena que nem todas as pessoas param pra pensar do jeito que voce pensa , pena que nem todos param nem pra ler o que voce publicou, pena que as pessoas só pensam em tomar uma iniciativa , depois que acontece uma tragedia tipo essa.. Entao quer dizer que para o país melhorar é preciso morrer centenas de pessoas , para que o governo perceba que tudo é uma possibilidade , que tudo pode acontecer ??