Brasileiro nasce com carimbo na testa escrito “habitante do terceiro mundo”. Fomos todos jogados nesse que parece ser o pior dos mundos, de desnutridos, incultos, maltrapilhos, toscos, broncos e brutos, contra os “habitantes do primeiro mundo”, cheirosos, ricos, bem cuidados, educados, cultos, trabalhadores, inteligentes, empreendedores. Uma divisão de mundo simplista. Ainda mais na segunda década do terceiro milênio.
A recorrente percepção do Brasil como país de “terceiro mundo” criou o curioso “complexo de vira-lata”, que ajuda a manter essa visão. O brasileiro se vê como terceiro mundista, embora o país venha nos últimos vinte anos dando um tunda na pobreza como poucos no mundo. Ok, ok, avançar do nada, sair do zero pra alguma coisa é sempre mais fácil em termos estatísticos. Mas veremos que justamente é a estatística que nos derruba e que destrói da mesma forma esse conceito de terceiro e primeiro mundo.
Pesquisadores da ONU e de suas agências coligadas com frequência monitoram os índices sociais dos países. Não é uma questão apenas econômica e imediata, como bancos fazem ao aplicar notas de “confiança pra investimento”. É uma questão social, afinal vivemos todos no mesmo balaio e se um monte de gente se danar sem comida ou água potável, vai sobrar pra quem tem e já se ajeitou. Não dá pra dar de ombros ao problema e simplesmente ser desumano.
As pesquisas mais recentes, de 2010 pra cá, muitas delas publicadas pra quem quiser ver, de uma maneira agradável e simples, no site da revista Exame, mostram que na verdade a divisão do mundo é muito mais complexa do que nos acostumamos: há um “segundo mundo” do qual se ignora, e um “quarto e quinto mundos”, onde a pobreza é até inclassificável. O brasileiro pode comemorar de não estar na sarjeta, apesar de que ser a sétima ou oitava economia mais parruda do mundo não nos credencia sequer a cogitar um lugarzinho no “segundo mundo”. Vamos ficar no “terceiro mundo” enquanto não resolvermos questões mais importantes do que só produzir riqueza.
Uma das pesquisas aponta os dez países que oferecem “mais qualidade de vida” (clique aqui, texto de 14 de junho de 2011), porque entende-se que essa é a prioridade das prioridades. A gente trabalha pra viver e não deveria viver pra trabalhar. Mas, segundo a revista, “este conceito vem sendo aprimorado nos últimos anos. Não se trata apenas de ter uma alimentação saudável, fazer uma pausa no trabalho para a ginástica laboral, ou contar com um parque por perto para uma caminhada no fim do dia. (…) O estudo analisa uma série de critérios que interferem na satisfação dos cidadãos com seu estilo de vida. Para compor o ranking, (…) pessoas dão opinião sobre saúde, educação, renda, mercado de trabalho, e outras categorias, em seu próprio país”.
A pesquisa é da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Brasil não é membro, por isso não participou. Mas entre os dez primeiros não entraria, por certo, porque a diferença é enorme. A pesquisa aponta a Austrália como o país com a melhor qualidade de vida do mundo, com renda média anual de cada família na casa dos vinte e sete mil dólares. Entram também, na ordem, Canadá, Suécia, Nova Zelândia, Noruega, Dinamarca, Estados Unidos, Suíça, Finlândia e Holanda. Todos eles tê algo em comum: bom sistema de saúde, eficiente distribuição de renda, educação fortalecida, pessoas confiáveis, alto índice de emprego e bons salários.
Na Noruega, mais de 75% dos pesquisados declararam que “têm várias experiências positivas em um dia comum”. É algo conceitualmente inimaginável por essas bandas.
Mas o mais curioso está em dois outros pontos em comum (a todos eles, menos ao Estados Unidos, que logo parece merecer um rebaixamento desse grupo): todos eles confiam nos seus governantes e têm poucos habitantes.
Confiar em seus governantes é de fator essencial pra que se possa compreender a outra pesquisa, onde se aponta as “melhores taxas de retorno” ao imposto pago pela população. Embora o brasileiro viva chiando pelo o que acredita ser uma carga tributária elevadíssima, o país não está entre aqueles cujos impostos representam o maior percentual do Produto Interno Bruto. Há países que pagam proporcionalmente muito mais impostos do que nós (pesquisa publicada em 14 de maio de 2012). Enquanto o teto do nosso Imposto de Renda é de 27,5% e a carga tributária represente 36,02% do PIB (tendendo sempre a aumentar), na Suécia, o IR pode chegar a 56,6% e todos os impostos fazem 44,08% do PIB. Na Áustria a mordida do IR é de 50% (assim como na Bélgica, no Japão e na Inglaterra) e o impacto no PIB é de 42%.
A diferença, qualquer protozoário sabe, é o retorno que se tem dessa dinheirama que vai pras mãos do governo. Fica fácil entender o porquê desses povos confiarem em seus governantes (os ingleses também não confiam muito): a alta qualidade de vida em seus países é o produto que esses impostos compram.
Nessa conta da “taxa de retorno”, o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, pesquisou a relação dos trinta países com maior carga tributária do mundo, relacionando com o PIB e o Índice de Desenvolvimento Humano, pra chegar ao Índice de Retorno de Bem Estar à Sociedade (IRBES). É claro que o Brasilzão ficou em último lugar (matéria publicada em 24 de janeiro de 2012). A Austrália papou o posto mais alto, com “baixos” impostos e alto IDH.
A conta é simples, portanto: pagou muito imposto, tem que ter muito retorno. Há casos, veja só você, de países de baixa qualidade de vida, onde quase não se paga muitos impostos: Índia (11,9% do PIB), Coréia do Norte (11,4%), Azerbaijão (11,4%), Bangladesh (11%), Nigéria (9,9%), Afeganistão (8,8%) e Mianmar (4%, o lugar onde menos se paga imposto no planeta). A lista completa dos dez povos que menos pagam, você encontra aqui (matéria de 25 de maio de 2012). Mas são lugares onde não se vê riqueza abundante e não são exatamente exemplos de qualidade de vida: “países que não fazem nenhuma mágica com dinheiro. As explicações vão desde a obtenção de outras fontes de renda, como petróleo – é este o caso do Azerbaijão, por exemplo – ou porque mantém uma máquina estatal menor com menos garantias à população”.
Eis que o brasileiro tem razão de reclamar. Paga muito, de jeito mais complicado, tem a Receita fungando no cangote a todo instante, principalmente dos empresários, mas não vê retorno algum. Além disso, os constantes casos de corrupção, com alto índice de desvio de verba pública, fazem a confiança ser derrubada a quase zero – e mais: infelizmente, é uma prática que se tornou “cultural” e aceita por grande parte da população (“é melhor eu roubar, sonegar e fraudar, porque senão outro vai fazer”).
Analisando todas essas listas e estatísticas, percebemos que os mesmos países a povoam: Austrália, Nova Zelândia, Dinamarca, Suécia, Finlândia, Noruega, Holanda, Suíça, Luxemburgo, Canadá. Às vezes, Estados Unidos, Inglaterra, Bélgica, Áustria e Alemanha. Dificilmente, veremos França, Espanha, Itália, Portugal e até mesmo o Japão no topo de qualquer dessas listas. É claramente uma divisão: esses lugarem formariam o que se pode chamar de “segundo mundo”.
Qualquer pessoa que for aos “dois mundos”, consegue ver a clara diferença entre a segurança, organização e educação dos países que habitam o topo dessas listas e aqueles que acostumamos chamar de “primeiro mundo”. Eles ainda são ricos e cheios de oportunidades. Ainda respeitam o cidadão e o consumidor. Ainda têm a ética em alta conta. Mas enfrentam problemas estruturais graves. O presente já se mostra sombrio.
A diferença está naquele fator que mencionei acima: quando há poucos habitantes, é obviamente mais fácil distribuir a renda através de benesses advindas dos impostos. A justiça social se apresenta com louvor. Há menos diferenças entre as pessoas, entre ricos e pobres, se é que há pobres.
Em contrapartida, países abarrotados de pessoas continuam sofrendo pra se ajustar, quando não afundam de vez. O Brasil tenta, mas esbarra também nesse empecilho. A Rio+20 sequer tocou no assunto. Porque é tabu tocar no assunto. É preciso ter menos gente habitando essa joça, caso contrário, vamos ficar eternamente tentando arrumar soluções pra usar os limitados recursos que a joça nos oferece.
Já somos quase sete bilhões, quiçá mais, já que muita gente nasce por aí, nos “quarto e quinto mundos”, e ninguém se dá conta disso. Não há o que fazer com esses que já estão aí. Não se pode matar, exterminar e ai daquele que propuser tal solução – é um pulha que deveria ser o primeiro da fila a tomar uma sova. É preciso, ao contrário de qualquer ignóbil “solução final”, alimentar, educar e dar emprego.
Por outro lado, há o que se fazer daqui pra frente. A solução é nascer menos gente. Os governos precisam criar programas de natalidade consciente e responsável, programas mundiais, passando por cima de toda baboseira religiosa que impede prevenção e a interrupção de gestações, quando forem indesejadas. Acima de tudo, é preciso educar, educar e educar. Ensinar. Explicar (aqui, Forastieri tratou bem do assunto, como sempre). Os recursos naturais são escassos pra todo mundo que já tá aí. O que vamos fazer? Virar as costas pro problema principal, tabu que é? É o que estamos fazendo até aqui.
E, assim, estamos enchendo o planeta de problemas insolúveis e dividindo o mundo em mais estratos. Vai chegar o dia em que alguns poucos se privilegiarão dos benefícios do “primeiro mundo”. O resto dará as mãos àquela agonia da sobrevivência que o brasileiro já está acostumado.