A matéria de Claudio Julio Tognolli, no site Brasil 247, sobre a prisão de Rita Lee nesse final de semana, em Sergipe, no que deve ser seu último show da carreira, comparando com a prisão de Lobão, seu biografado em “50 Anos A Mil”, 25 anos atrás, levanta uma série de questões, que giram em torno de como o “cidadão médio” se posiciona diante das autoridades.
Rita Lee se revoltou com a truculência da polícia em seu show em Aracaju. Tacou um discurso inflamado contra a força, perguntando quem era o responsável por aquilo, falando que tem 67 anos, que é do tempo da ditadura, que o show era dela, xingando os policiais de filhos da puta, cavalos, “por causa de um baseadinho” (que ela até pediu pra fumar no palco) e tudo o mais. O governador Marcelo Déda, do PT, estava presente, e o vídeo o mostra saindo do local contrariado. A plateia, claro, foi ao delírio, principalmente quando a Tia do Rock grita que “isso é rock’n’roll”.
O vídeo pode ser visto aqui:
Rita Lee foi parar na cadeia por desacato à autoridade e incitação ao crime. Mesmo quem não foi ao show e não viu a cena ao vivo se revoltou. Como assim a Rita Lee presa? #freeritalee! foi a hashtag que pintou nas redes sociais.
Heloísa Helena, a outrora senadora, hoje vereadora de Maceió, que também estava lá no show, correu pra acudir a cantora na delegacia. Seu esforços, diz-se, foram essenciais pra que Rita Lee fosse solta.
Tognolli mostra o quanto a polícia e seus comandantes, normalmente nas figuras dos governadores, hoje eleitos pelo voto popular, estão despreparados pra situações de desobediência civil.
O artigo 331 do Código Penal Brasileiro (CPB) trata do “desacato”: “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”, em prol do “interesse em se assegurar o normal funcionamento do Estado, protegendo o prestígio do exercício da função pública. A proteção se refere mais à função pública do que a própria pessoa do funcionário”. Ou seja, protege-se o funcionamento do Estado e, depois, o indivíduo que cumpre a função, mesmo que quem tenha que relatar tal crime seja a pessoa – já que, você sabe, o Estado não é exatamente um ser pensante.
A última vez que o CPB foi substancialmente alterado data de 1984. O código original é de 7 de dezembro de 1940. Não é preciso ser inteligente pra perceber que de lá pra cá, a sociedade mudou um bocado, que o mundo é outro, que as exigências de convívio são diferentes.
Não vamos nos aprofundar muito na questão, vamos nos ater apenas na parte do desacato. Essa é uma daquelas leia que mereceriam revisão, caso o Estado passasse a funcionar plenamente na ordem da meritocracia. Mas funcionário público é cota estatística de diminuição de emprego, faz conta de inchaço da máquina, não pode ser demitido (pode, mas é difícil), não é bem treinado (quando é – e a maioria não é) e não tem perspectiva de crescimento ou de solidificação de carreira, por isso se acomoda e alimenta a morosidade do próprio funcionamento do Estado. É tudo que o mundo atual e a iniciativa privada desprezam em seus quadros.
Por funcionário público entenda desde aquele cidadão encostado na repartição até o policial, militar ou não. Grande parte está ali trabalhando por necessidade (falta de opção), por oportunidade ou por comodidade. Vai fazer um trabalho decente? A qualidade do serviço público está aí pra você julgar.
Quando o cidadão comum precisa de um serviço público é tratado com o descaso que o humor da máquina exige. Ele pode reclamar, há vias legais pra isso, mas pense em casos pequenos, diários, como pedir um alvará, por exemplo, ou o pedido de poda de uma árvore etc. O tempo que isso leva não depende só da burocracia irracional em si, mas da vontade com que aquele quadro de funcionários não medidos pelo mérito terá pra dar andamento ao seu pedido. Se você se exaltar, como se exalta quando os pulhas de empresas telefônicas ou de tevê a cabo te enchem o saco ou passam por cima de seus direitos, pode acabar preso (“pena: detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa – competência dos juizados especiais criminais, podendo, o réu ser beneficiado com o instituto da transação penal [Constituem infrações de menor potencial ofensivo: crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa]”).
A lei é tão antiga e mofada, que alimenta essa própria inoperância. Talvez funcionários públicos devessem ser passíveis de demissão por incompetência qualquer, mas são resguardados por uma lei que pretende ser um escudo pras inclinações políticas de cada funcionário. Ninguém pode ser mandado embora por gostar ou ser filiado a esse ou àquele partido: essa era a intenção – que já não faz mais sentido – o que causa grande distorção. Não tá na hora de mudar? Pergunta de leigo, só pra saber.
Porque essa falta de competência, de vocação, de perspectiva, de treinamento, de subsídios, de bons salários, faz com que uma série de pessoas assumam cargos de “autoridade” e façam o Estado jogar contra o cidadão. A polícia é assim. A militar muito mais, que é a que bate de frente com a população. Deveria ser justamente essa que a mais bem treinada e educada pra tratar conflitos civis (grandes ou pequenos) e preparada pra se ater com a criminalidade pesada e cruel. Porque há crimes e crimes, não dá pra tratar todos com o mesmo rigor e com a mesma força.
O que Rita Lee fez foi uma galhofa de tiazinha. Tipo Dercy Gonçalves. Tipo Lobão. O público adora. É show, e nem business chega a ser, é divertimento dela e de quem pagou ingresso pra vê-la mostrar a bunda e dizer tais impropérios. É óbvio que ela não quer que as pessoas peguem em armas, batam na polícia, destituam o governo e saiam fumando um baseado por aí (ou se quiser, vai ficar querendo). Então, não é preciso cadeia ou truculência alguma. Há lugares em que a Polícia deveria apenas observar, ou talvez nem existir como agente repressor (embora sempre seja preciso um freio aos mais exaltados, metidos a besta). Cabe, pois, discutir o papel da Polícia na sociedade. Sua atuação não pode mais ter resquícios da vida bruta, de guerra civil e ideológica que houve nos vinte e cinco anos de ditadura militar.
E independe do partido que a comande. A polícia de Sergipe está sob o guarda-chuva de um governador do PT, que adora bater nos desmandos dos governadores de outros partidos. Em São Paulo, com o absurdo caso da comunidade Pinheirinho, em São José dos Campos, a polícia está sob a égide do PSDB, que adora bater nos governadores do PT. Ambas, porém, são iguais na forma e no jeito de pensar e agir: são autoritárias, despreparadas e seguem conceitos antigos.
Mas é uma polícia que tem apoio. Causa-me arrepios quando o argumento vazio pra defender a polícia vem na base do “está cumprindo ordem judicial”, “é em nome da família e da ordem”, “tá com pena, leva pra casa” (sobre as vítimas da truculência), “bandido bom é bandido morto” (e que se dane a mesma ordem que esperam que a polícia cumpra); argumentos reducionistas que levam em conta que qualquer situação é igual à outra, sem identificar o contexto, as consequências, os prós e os contras.
Talvez seja porque a população realmente prefira uma polícia despreparada e corruptível. Afinal de contas, se a ordem policial se fizesse presente em Ipanema, nos Jardins, no Morumbi, da mesma forma que no Pinheirinho, como as pessoas que param em fila dupla, ou passam sinal vermelho, ou estacionam em local proibido, ou não pagam seus impostos, suas multas, ou cheiram sua carreirinha, fumam seu baseadinho, dirigem bêbadas etc., poderiam tratar de dar “seu jeitinho”?
A sociedade brasileira talvez prefira nessa ordem uma polícia que aceite suas “pequenas” corrupções, que faça vista grossa, pelo menos pra si, porque pra pobre, vá, tanto faz (o que é uma falácia: pobre não é bonzinho por ser pobre, longe disso, ele também corrompe e tanta dar seus muitos jeitinhos com a polícia). No fim, acho que todo mundo prefere uma polícia assim, maleável, flexível, que não leva tão a ferro e fogo “uma ordem” da lei, pra continuar ajustando as normas às suas necessidades egoístas.
Um pouco sobre essa tese, aqui:
A bronca de Ricardo Boechat, no áudio abaixo, sobre a ação da polícia paulista no caso do Pinheirinho é uma indignação que qualquer pessoa sensata deveria ter: fala sobre a legitimidade da ação (a quem interessa?), sobre a questão dos “espertalhões” que se “aproveitam da situação” (né, Sonhinha Francine?), sobre tráfico e consumo de drogas no local, sobre a inoperância do governo federal (a discussão é em bases eleitorais e políticas) e fecha o ciclo: é preciso um pouco de desobediência civil, vez por outra.
Ricardo Boechat:
Sim, é bom incomodar políticos. E é bom incomodar quem argumenta daquela maneira reducionista. A gente sabe que um governador não pode (nem deve) passar por cima das leis e dos outros poderes, mas ele pode (e deve) questionar, pode (e deve) se mostrar contrário a decisões infames dos outros poderes, pode recorrer. Esse é o seu modo de desobediência civil: obedecer contrariado, deixando isso bem claro, recorrer de decisões socialmente injustas, mesmo que legalmente corretas. Mas Déda e Alckmin não se mostraram contrariados e até defenderam a ação dos seus comandados. Tem que obedecer, mas pode oferecer alternativas, e não precisa, obviamente, descer o porrete.
Mas qualquer um, como Rita Lee, pode desobedecer, pode peitar, pode pensar diferente, levando a cabo aquela velha máxima de que deveríamos lutar por uma educação que nos ajude a pensar e não por uma que nos ensine a obedecer. É isso que qualquer latifundiário do poder quer.
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