Não entendo alguém não gostar de Carnaval. Quer dizer, até entendo quem não gosta da bagunça, da turba ensandecida e de algumas músicas, mas não entra na minha cabeça não gostar de samba, ou de samba de enredo, ou, pior, das clássicas marchinhas que ainda embalam quase todos os festejos de rua do Brasil.
Quem acompanha este site desde seu nascedouro, em 2006, sabe que gosto de barulheira. Quanto mais distorcida for a guitarra, melhor.
Porém, basta bater o final de novembro, começo de dezembro, quando sai o disco dos sambas de enredo das escolas de samba, principalmente do Rio de Janeiro, pra eu mudar de ritmo. É uma paixão de longa data. Sou um colecionador ferrenho desses sambas pra avenida. Tenho quase tudo desde 1967. São mais de 600 músicas que traçam um bom registro dos costumes do país nessas quase cinco décadas: gírias, termos, temas, preconceitos, importâncias históricas elevadas ou descartadas, baboseiras… É no tema de cada samba que a vida do povo é contada, que a história fora dos livros de história se faz presente.
O samba não se prende ao futuro, pensa no agora e, obviamente, no passado, misturando tudo, pra fazer divertir. Mas essencialmente pra emocionar.
Já desfilei na Marquês de Sapucaí algumas vezes. Cinco, se não me engano. E vi, das arquibancadas, outros tantos carnavais. Há por certo emoções mais fortes do que essa, mas não tantas. Só os incautos e os virgens de avenida podem dizer o contrário.
Porém, não são só eles os críticos do carnaval. Os detratores focam seu desprezo na música, que dizem ser repetitiva, variação sobre o mesmo tema. É fácil ver que não se trata de uma verdade. Principalmente na questão dos temas.
A União da Ilha no carnaval de 1979 chega a brincar com isso:
“Eu queria saber agora/O que será?/Vou perguntar/A menininha do Gantois/Pode ser um grande Herói/Índios, africanos ou magia/Ou será um tema da velha Bahia?/Já ouvi dizer que é Debret/Ou antigos carnavais/Mas se for candomblé/Eu peço axé/Aos meus orixás”, versa a letra de Didi e Aroldo Melodia.
Entretanto era só uma União da Ilha provocando, como fez por muitos anos (bem como a São Clemente).
Há de se considerar que a profissionalização dos desfiles (durante a década de 1970 e, principalmente, com a construção do sambódromo na Marquês de Sapucaí, em 1984, e o consequente crescimento com as transmissões ao vivo pela tevê), a proibição da nudez, o refinamento da metodologia de apuração, e o bocado de grana envolvida forçaram um engessamento da forma: andamento padronizado e sendo acelerado ano após ano, alegorias cada vez mais espetaculares e hollywoodianas e alas coreografadas e sem muita liberdade, distanciando da autenticidade.
Mesmo assim, os carnavalescos e os envolvidos das comunidades se esforçam pra inovar e criar algo diferenciado. Musicalmente, um bom exemplo disso é a inclusão da batida funk que a bateria da Viradouro mostrou em 1997, ano em que foi campeã, com “Trevas! Luz! A Explosão do Universo”:
Mas não é algo com que se preocupar realmente. Qualquer música pop – e o samba de enredo e as marchinhas são mais pop do que qualquer música pop, no sentido literal de popular – se vale de uma estrutura básica, de temáticas conhecidas, de escapismo (mas nem sempre – e no caso do carnaval, nem sempre mesmo) e de uma força de distribuição que garanta que o máximo de pessoas ouçam e propaguem a ideia.
Dizer então que os sambas são todos iguais é perder tempo. São mesmo e isso não é ruim. Entretanto, como mostrou a Viradouro nesse exemplo recente, por vezes o samba se inova. Aquele que se ouvia em 1950/1960, com as pastoras, quase um cântico religioso, é anos-luz diferente do que se ouve hoje. E é como em qualquer música pop, de qualquer estilo – ou alguém ainda quer discutir se o Strokes ou o Foo Fighters trazem algo de novo, na forma ou no conteúdo?
Não me convence também o argumento da idiotização, do pão-e-circo ao povo. Strokes e Foo Fighters (ou 99% das bandas deste site), novamente, estão aí pra mostrar que o que vale pra um, vale pra outro. Se na era da ditadura militar, os sambas não ousavam na crítica e até lambiam botas (Beija-Flor tirando “10” nesse quesito), há de se notar, porém, que a abertura política fez muito bem aos sambas de enredo, que assumiram a voz da crítica popular, por vezes ridicularizando a história, os políticos, os famosos e dando umas cutucadas no sistema – um retrato da descrença do povão com a elite. Com a vantagem de que essas críticas são transmitidas em rede nacional e não pra um gueto fechado.
Senão, vejamos: Imperatriz Leopoldinense em 1988, com seu hilariante “Conta Outra Que Essa Foi Boa”, um samba sobre as patasquadas que os governantes prometem ao povo e nunca entregam. Era ano de Assembleia Constituinte e a Imperatriz não engoliu o clima de “tudo-vai-mudar”:
“Eu voto pra não esquecer/A vida tem que melhorar/O povo na constituinte/Vai ter mesa farta, sorrir/E até cantar/Quá, quá, quá/Você caiu, caiu/É brincadeira/É primeiro de abril/Eu quero é poder ser marajá/gozar a vida/pra vida não vir me gozar/Disse me disse/Na História do Brasil/Fui criança, fui palhaço/E ninguém me assumiu (ô seu Cabral…)/Cabral, ô Cabral/O esquema é de lograr/De 171 com a realeza/Me mandou uma princesa/Que fingiu me libertar, me libertar/Ô ô ô piuí/Piuí lá vem o trem/A ferrovia é brincadeira de nenê”, com letra de Zeca Catimba, Gabi, David Corrêa e Guga.
Quando Lula se elegeu nas eleições de 2002, a Beija-Flor tinha um samba entalado na garganta e que acabou campeão em 2003. Era “O Povo Conta a Sua História: Saco Vazio Não Para Em Pé, A Mão Que Faz a Guerra, Faz a Paz” e de engraçadinho não tinha nada:
As revoluções cantadas em rede nacional e com a elite aplaudindo: “(…)E o índio muito forte resistiu/A tortura implacável assistiu/Enquanto o negro cantava saudade/Da terra mãe de liberdade/Na frança é tomada a bastilha/O povo mostra a indignação/Revoltado com o diabo/Que amassou o nosso pão/(…)Todos lutaram contra força da opressão/(…)/Brava gente sofrida, da baixada/Soltando a voz no planeta carnaval/Eu quero: liberdade, dignidade e união/Fui lata, hoje sou pirata/Lixo e ouro da região/Chega de ganhar tão pouco/Tô no sufoco: vou desabafar/Pare com essa ganância, pois a tolerância/Pode se acabar…”, com Neguinho da Beija-flor encerrando com um emblemático “a esperança venceu o medo”.
A melancolia da Mangueira deu (mais uma da) sua contribuição em 1988, com Hélio Turco, Jurandir e Alvinho escrevendo o belíssimo samba de “Cem Anos de Liberdade, Realidade Ou Ilusão”, sobre o racismo ou a hipocrisia de que não há racismo entre aqueles das arquibancadas, na voz do saudoso Jamelão:
“Será…/Que já raiou a liberdade/Ou se foi tudo ilusão?/Será…/Que a Lei Áurea tão sonhada/Há tanto tempo assinada/Não foi o fim da escravidão?/Hoje dentro da realidade/Onde está a liberdade/Onde está que ninguém viu?”. Jamelão praticamente implora, pedindo de joelhos, com o respeito de quem apanhou muito e acha que deve ao “senhor”: “Moço/Não se esqueça que o negro também construiu/As riquezas de nosso Brasil/Pergunte ao Criador/Quem pintou esta aquarela/Livre do açoite da senzala/Preso na miséria da favela”.
O Império Serrano, em 1996, desistiu do acelerado carnaval e da festa pura pra, com a poesia de Aluísio Machado, Lula, Beto Pernarda, Arlindo Cruz e Índio do Império, fazer a beleza de “Verás Que Um Filho Teu Não Foge à Luta”, quase um pagode e quase uma ameaça, avisando que ou vamos juntos, pobre e ricos, pretos e brancos e amarelos e vermelhos, numa boa, ou é na porrada (repare no refrão):
“O povo diz amém/É porque tem/Um ser de luz a iluminar/O moderno Dom Quixote/Com mente forte vem nos guiar/Um filho do verde esperança/Não foge a luta, vem lutar/Então verás um dia/O cidadão e a real cidadania/Quero ter a minha terra/Meu pedacinho de chão, meu quinhão/Isso nunca foi segredo/Quem é pobre tá com fome/Quem é rico tá com medo/Quem tem muito, quer ter mais/Tanto faz se estragar/Joga lixo no chão, tem bugica pra catar/Senhor, despertai a consciência/É preciso igualdade/O ser humano tem que ter dignidade/Morte em vida, triste sina/Pra gente chega de viver a Severina/Junte um sorriso meu, um abraço teu/Vamos temperar/Uma porção de fé, sei que vai dar pé/Não vai desandar/Amasse o que é ruim, e a massa enfim/Vai se libertar/(…)”.
Exemplos existem aos montes. Dá pra montar uma playlist só que esses sambas de “protesto”.
É curioso observar que os sambistas estão alguns passos adiante dessa massa de jovens acéfalos que fazem passeata até pelo fim da corrupção (como se fazer passeata contra a corrupção adiantasse pra alguma coisa). Essa classe média branca e jovem, que não sabe contra o quê se revoltar e que adora uma festa com cerveja a oito reais (a latinha), não percebeu que os sambistas (e talvez os axezeiros) se infiltraram há muito no sistema pra gritar lá de dentro contra o próprio sistema. É a objetividade que os analistas cobram de toda ideia revolucionária.
Mas o samba, contraditoriamente, não tá afim de implodir nada. Ele se alimenta desse sistema e com esse sistema pretende continuar crescendo e enchendo os bolsos.
Então, de um lado a elite “dá quatro dias de diversão”, se mistura com a plebe, com “as comunidades”, se diverte e tenta expiar sua culpa; e do outro, muitos compositores vêem uma maneira de vender seu trabalho, com os supostos “opressores” a lhes aplaudir e afagar com verdinhas. No meio, o povão segue na sua estagnação. Se diverte, lava a alma, solta o grito, mas se desmancha em cinzas quando a realidade da quinta-feira pós-folia bate à sua porta.
É assim no samba, no axé, no rock, no funk, no grunge, no punk. Um vende (o artista), outro compra (nós). É um negócio, enfim.
Só que é um negócio que diverte. Por isso, volto ao primeiro parágrafo. Entendo quem não gosta da música – o argumento do subjetivo é irrefutável; só não vale é o argumento de que é tudo igual, de que é idiotizante, já vimos que não é. E entendo quem não gosta da bagunça. Mas é preciso enaltecer a força do Carnaval como expressão popular legítima, de tradição cultural. de liberdade de expressão e de isonomia de classes, raças e preferências sexuais – o carnaval de rua na maioria das cidades do interior, ou de Recife, de Olinda, Ouro Preto, Diamantina, Laguna, São Luís do Paraitinga, é sim democrático, pra qualquer pessoa.
Mais do que isso, é preciso enaltecer o Carnaval como festa anárquica, uma versão alternativa da sociedade, onde os reacionários e os libertários acabam falando e se entendendo na mesma língua da folia, do vale-tudo consensual, onde a máscara do moralismo dá lugar à da colombina ou do arlequim e o olho proibitivo e demoníaco das crenças deixam de fazer sentido.
Dizer que não gosta de Carnaval porque é popular e idiotizante parece tão bobinho quanto não gostar de uma banda porque ela faz sucesso, toca em trilha de novela, toca na MTV ou ganha um Grammy. Ou pior. A despeito de uma banda assim, cuja força social é irrelevante, o samba, o Carnaval, a folia traduzem um Brasil legítimo e eficiente aos olhos do mundo, em termos de organização e de um objetivo em comum. É a nossa marca registrada, querendo ou não.
Mas há modernos que torcem o nariz, porque… Bem, é moderno e cool torcer o nariz pra uma ideia popularizada. Eu, porém, não vejo problema algum em um povo ser reconhecido como criador, organizador e entusiasta da melhor, maior e mais organizada festa popular do mundo. Por isso, esse salve ao Carnaval num site de guitarras distorcidas.
Na Quarta-Feira de Cinzas, tudo vai voltar ao normal. Então, aproveite.
Parabéns pelo texto. Achei foda. Só faltou um pouquinho de samba paulistano =) hehehe
Fica pra próxima.
Wilson das Neves não concordaria com o “é tudo igual” 😉
É verdade que há uma quase interminável lista de sambistas e compositores e críticos e apaixonados pelo samba que jamais poderiam concordar com essa afirmação, nem mesmo se tratando de sambas de enredo. Mas eu quis contemporizar um tanto.
É que seu texto me lembrou uma cena do documentário “As Batidas do Samba”, onde ele comenta exatamente isso. 🙂
“É tudo igual”, de acordo com o ponto de vista. Do mesmo jeito que alguém não ligado em Carnaval diz que os sambas são iguais, minha vovozinha não consegue distinguir Hard Rock de Shoegaze ou Post-Rock…..