O dito popular nos ensina que “de graça até injeção na testa”, como se pra ter algo de qualidade fosse preciso pagar. Não existe almoço grátis, nos dizem. No caso de shows de música a coisa vai ao extremo, com ingressos caros, estrutura quase sempre capenga, falta de respeito dos produtores que invariavelmente acham que o público é trampolim pra vender marcas e mais marcas e música jovem é só ferramenta de marketing.
A Popload tem tentando mudar um pouco essa lógica (bem como o Circo Voador). A sua variável “social” é uma sacada interessante, que dá ao público a oportunidade de ver bons nomes da música não-comercial mundial sem ser extorquido na boca do caixa. No episódio PJ Harvey, extraída do festival que aconteceu no dia seguinte, no Memorial Da América Latina, em São Paulo (que ainda tinha Phoenix), o público teve que trocar uma ação social pelo direito de ver a apresentação extra da cantora. Valia doação de sangue e trabalhos “voluntários” em ONGs selecionadas.
No Teatro Bradesco, uma marca em si, mas nunca presente de maneira ofensiva, o público foi tratado com o respeito que merece. Lugar irretocável pra se ver um show como a da PJ Harvey, a artista mais elegante atualmente, junto com Nick Cave. O público todo sentado, em cadeiras confortáveis, acústica decente (embora o som no começo estivesse bem embolado), não havia nada que tirasse o foco do palco: nem zumzumzum lateral, nem marcas em balões e neon, nem tirolesa, nem roda gigante, nem filas pra cerveja. Um show como força artística, não como evento.
E Polly Jean fez por merecer a atenção. Na última vez que a vi num palco, no TIM Festival de 2004, a cantora não havia me marcado. Ficou na minha memória o show do Primal Scream, que os críticos chamaram de meia-boca. Àquela época, parecia-me que um analista desenvolver qualquer lógica crítica à PJ Harvey era uma heresia. Treze anos depois, eu mais velho e sóbrio, percebo que tal elegância necessita de uma atenção especial, calcada em certa maturidade. Ou disposição.
PJ Harvey é teatral e isso incomoda um pouco. A inglesa empeteca sua música com muitos elementos folclóricos, mas não parece uma forçação de barra. A sua trupe de dez músicos (ela mais nove) entram tocando seus tambores e sopros, em fila, algo ritualístico, como uma banda marcial. PJ vai começar a apresentar ao seu público sete canções do seu mais recente disco, “The Hope Six Demolition Project”, de 2016; cinco do anterior, “Let England Shake”, de 2011; e uma aqui, outra acolá, dos seus outros sete álbuns.
A preferência pelo novo disco não é só uma questão de promover o trabalho (a turnê, afinal, é pra isso), mas é um recorte de como ela pensa o mundo hoje. PJ, claro, também está mais madura treze anos depois e “The Hope Six Demolition Project” é uma alfinetada na política internacional exclusivista que o mundo globalizado se propõe. Ao acessar a música folclórica e barulhenta – não só vinda das até quatro guitarras, mas também do impressionante sax que ela também toca, junto com Terry Edwards, que nos presenteia com um solo impressionantemente distorcido em “The Ministry Of Social Affairs” – ela se volta às tradições contra uma falsa globalização que se preocupa, contraditoriamente, cada vez mais xenófoba.
Entretanto, essas são iscas que o público nem precisa se preocupar em beliscar. PJ Harvey oferece também sua voz firme e potente e uma banda que lembra a vastidão de possibilidades da orquestra de Glenn Branca, com a já citada elegância e teatralidade que faz o palco do show ter ainda mais sentido.
Os músicos se revezam nos instrumentos (ora guitarra, ora teclas, ora violino, ora sopros e voz), mas o público se fixa na PJ Harvey magrela que foge de qualquer intenção de ser musa ou diva. Ela não fala com a plateia – foram apenas dois “obrigada” e a apresentação da “minha banda” – só canta e deixa seu corpo se contorcer no embalo da interpretação. Nos intervalos entre as músicas surge um às vezes demorado silêncio que embora entranho casa bem com o espetáculo.
Com uma hora e quarenta de palco, já incluindo aí um dispensável bis, anticlimax pro soberbo coral de “River Anacostia”, PJ Harvey fechou um show exemplar: artista madura, por vezes ousada, num local perfeito, ao preço de um leve e indolor exercício de conscientização geral.
01. Chain Of Keys
02. The Ministry Of Defence
03. The Community Of Hope
04. Shame
05. All And Everyone
06. Let England Shake
07. The Words That Maketh Murder
08. The Glorious Land
09. Dear Darkness
10. White Chalk
11. In The Dark Places
12. The Wheel
13. The Ministry Of Social Affairs
14. 50ft Queenie
15. Down By The Water
16. To Bring You My Love
17. River Anacostia
BIS
18. Near the Memorials To Vietnam And Lincoln
19. The River