PRIMAVERA FAUNA 2014 – COMO FOI

Já tem um tempo que venho questionando a mania brasileira de megalomania na hora de produzir um festival de música. Parece que por aqui se não for um evento pra mais de cem mil, duzentas mil pessoas, não presta, não vale a pena, não dá ibope. Os resultados são normalmente desastrosos, porque pra pagar a conta é preciso dar mais espaço aos patrocinadores do que à música. É o que o Barcinski chama de “evento-manada”.

Não é privilégio de brasileiro, como se sabe. Mas enquanto mundo afora esses grandes eventos têm no calendário a balança de eventos menores e mais bem organizados em termos de estrutura e conforto, aqui no Brasil, ou é gigantesco ou é gigantesco.

Se tirarmos os eventos regionais, festivais voltados ao fomento do artista nacional, não sobra nada (o MECA, talvez?).

A desculpa é que o custo é muito alto. Pode ser, não sou produtor, não me meto nessas coisas. Mas a questão é: por que não tentar fazer algo do tamanho do Primavera Fauna, do Chile, pra quinze mil pessoas?

Pela primeira vez, fui conhecer o festival. O tamanho é condição pra melhor organização? Bem, não. Claro que não. Mas há diferenças. O festival é bastante desencanado com acabamentos, está mesmo preocupado é com a música que vai apresentar, embora tenha lá suas marcas (uma marca de telefonia dá nome ao festival, e os palcos tem testeiras com patrocinadores). Mas por ser bem enxuto e pequeno, a desorganização não incomoda nem um pouco. E aí talvez esteja o “x” da questão. Os erros acabam diminuídos no impacto junto ao público.

Ajuda também o fato dos chilenos serem calmos demais. Chegamos ao centro de Santiago por volta do meio-dia, pra pegar o ônibus que faria o traslado até o Espacio Broadway, a trinta quilômetros da capital, onde se realiza o festival. A ideia era aproveitar o transporte gratuito (que seria gratuito até a uma e meia da tarde), já que não havíamos conseguido comprar com antecedência na Internet.

No local, porém, nenhuma fila, nenhuma sinalização, nenhuma orientação. Mas já havia um bocado de gente esperando o transporte. Quando o primeiro ônibus chegou, todo mundo se aglomerou em frente dele e uma fila desorientada se formou. Mas ninguém organizava nada. Não quero imaginar como seria o tumulto de um lance desses no Brasil.

Pegamos o terceiro ônibus. Mas acredite, o motorista se perdeu em Santiago, por conta de vários desvios no trânsito feitos pela polícia, já que havia outro megaevento na cidade. Demoramos quase uma hora pra chegar ao Broadway. A gente ainda tinha que pegar os ingressos comprados na Internet, o que foi bem fácil, sem filas, sem tumulto.

Compramos pra área VIP, que é, por incrível que pareça, mais barata que o ingresso normal, se formos contar os benefícios (basicamente a cartela de bebida gratuita que dão – levando-se em conta o que eu ia gastar comprando aqueles drinques, e acredite, eu ia gastar, realmente acabou saindo mais em conta). Mas não havia uma fila exclusiva pra área VIP, todos entravam pela mesma fila. Sem problemas, claro, a não ser o fato de que o primeiro show, o do Boogarins, começaria a uma da tarde – eram cinco pra uma naquele momento da troca do ingresso e os portões não haviam sido abertos ainda!

Eles abriram exatamente a uma da tarde. Apesar da enorme fila, num sol de rachar, ela andou rápido e em cinco minutos estávamos na revista, com a pulseira do acesso à VIP.

Nem deu tempo de fazer o reconhecimento prévio do local, o que seria desejável, porque nem bem entramos e o Boogarins começou seu show. Mas deu pra ter uma ideia da organização: muitos banheiros, muitos pontos de caixa pra comprar bebida e comida, e muitos bares. Impossível formar uma fila sequer pra comprar ficha ou retirar bebida e comida, o que de fato se comprovou durante todo o dia. O calor batia os trinta e cinco graus. Imaginei que seria complicado pegar cerveja durante o dia, assim que a cartela VIP acabasse. Não foi. Longe disso.

O número de ingressos vendidos pro festival (quinze mil) ajudou? Creio que sim.


Boogarins


Boogarins

Cerveja na mão, me posicionei pra conferir finalmente o Boogarins ao vivo. Aclamada no Brasil, por conta de um disco bem insosso (pra mim), “As Plantas Que Curam”, de 2013, ao vivo deu pra perceber que o chato sou eu. O disco é mala, ainda acho, mas em cima do palco é possível compreender porque hoje é o grupo brasileiro com a agenda internacional mais cheia e disputada. Os goianos fazem por merecer e torço sinceramente que consigam galgar as escadas das escalações dos festivais internacionais. Eu chamaria pro meu, se um dia eu fizesse a besteira de ser curador de festival.

Um ótimo show. Alegre, descontraído, com doses de psicodelia e um vocal preguiçoso que cai muito bem no todo. Havia pouca gente assistindo. Abertura de festival é assim mesmo. O público perdeu.

Vale ver (em HD) o que a banda fez com “Lucifernandis”:

A hora de reconhecer o ambiente veio perto do fim do show dos brasileiros.

Eram quatro palcos. Dois deles principais, um ao lado do outro, rolando shows alternados. O Boogarins tocou no Palco Rosen. O do lado era o Palco Movistar, da patrocinadora master do evento. Entre os dois palcos e o terceiro (menor, o Cristal Light) existiam bares, piscinas (fechadas e já falo delas), e a pequena praça de alimentação, além de umas tendas muito bacanas de descanso.

Por todo evento – e isso foi o que mais saltou aos olhos – havia a preocupação com o bem-estar do público, com o descanso. Parecia que os organizadores tinham ciência da maratona daquele dia e que quem chegou cedo poderia não aguentar.

O Espacio Broadway é pequeno, se comparado com locais que os paulistas estão acostumados com shows, como o Autódromo de Interlagos, o Jockey Club etc. Mas por todo o espaço havia essas tendas de descanso e outras plataformas altas com grandes colchões (um dos patrocinadores era uma empresa de móveis e colchões), pra proteger do sol, além de mesas e cadeiras de um dos bares, numa área verde, pufes e, acredite, redes pra quem quisesse um cochilo ou um namorico.

Eram soluções simples pra agradar o público. Nessas opções de descanso, não cabia todo mundo, é claro, mas é óbvio que nem todo mundo vai descansar ao mesmo tempo. E num festival desse tamanho, me pareceu o suficiente, positivo e bem charmoso.


Cóndor Jet

Nesse terceiro palco, o Cristal Light, acontecia o show de uma das boas bandas chilenas que não conhecia e descobri ali, a Cóndor Jet. Com um disco de 2013, “Anillos”, e um EP apenas na discografia, ao vivo o grupo se mostrou como o Boogarins, bem melhor do que em disco. E tocou pra meia dúzia de gatos pingados. Uma pena.

Foi uma apresentação deliciosa de igual psicodelia pop que os brasileiros apresentaram, apesar de uma dispensável cover dos Beatles, com “With A Little Help From My Friends”. Foi bacana ver o trio ao vivo. E o Floga-se vai falar deles mais vezes.


Cóndor Jet

Nessa hora, o que me preocupava era a cerveja. Ok, quem me conhece sabe que essa sempre é uma preocupação. Mas, veja, a cerveja estava quente e a explicação pra isso é incrível: elas estavam gelando em geladeiras e não em contêineres com gelo, como era de se esperar. Jamais iam dar conta de gelar uma garrafinha que fosse. E uma cerveja custava três mil pesos, o equivalente a doze reais. Se você comprasse duas de uma vez, custava cinco mil pesos, ou vinte e um reais, mas vão te dar as duas de uma vez.

Mais sobre preços: as comidas valiam fichas de três mil pesos e cada comida, de hambúrgueres e batatas fritas a opções japonesas e empanadas, tinha seu valor em fichas. Não é barato, enfim. Mas o mais estranho é que a produção do festival não informa esses preços com antecedência, de modo que não dá pra saber quanto levar de grana pro dia todo. Ao menos, em todos os muitos e espalhados caixas do evento, aceitava-se cartão e, pelo o que vi, não houve problemas nas transações.

(veja as fotos oficiais do festival do evento neste link)

Após o Cóndor Jet, fomos ver as piscinas. Das quatro do local, só uma estava aberta ao público e, apesar do calor, pouca gente se arriscava nela. Uma piscina pequena, mas era ali que ficavam os pufes, as redes e os bares mais arejados, com sombra das árvores e uma boa grama pra se esparramar. Era o espaço pra se largar e tirar um cochilo, se fosse possível. Além das piscinas, quase no estacionamento da entrada do local, havia o Fauna Stage, palco da música eletrônica, que me atrevi a dar uma breve passada apenas.

Finalmente, depois de caminhar, fomos à área VIP. Ela fica entre os dois palcos principais, atrás da plateia. Dá boa visão de ambos os palcos e não atrapalha ninguém do “público comum”. Localização perfeita.

Mas, curiosamente, como em todo o festival, nada estava pronto. Até umas cinco da tarde, ou seja quatro horas depois de abertos os portões, ainda tinha produção montando estrutura do festival (dando marteladas, carregando caixas com comidas e bebidas etc. Pra se ter uma ideia, o banheiro da área VIP começou a funcionar, pois não estava pronto, só às quatro da tarde). A impressão era que eu estava num bom evento-teste e que o festival em si começaria, sei lá, no dia seguinte. Foi bizarro. Mas nada disso incomodava ninguém, parecia normal as tendas de comida estarem sendo montadas durante o evento. No Brasil, ainda bem, isso seria inimaginável. Mas o chilenos são calmos, calmos, calmos.


Área VIP

A área VIP é um negócio minúsculo, pra pouca gente, mas com bar próprio, o que facilita bastante, embora também ali a cerveja estivesse em geladeiras e não diretamente no gelo. Ou seja, quente. Um mobiliário decente e confortável e uma gostosa sombra convidava ao descanso. E aqui está o maior motivo de eu ter comprado VIP: minha esposa não curtia algumas atrações. Ela ficava ali confortavelmente e eu ia bater perna, ver o Beach Fossils.


Beach Fossils


Beach Fossils

Os novaiorquinos foram os últimos confirmados no festival, bem depois que os ingressos já estavam quase todos vendidos (não, não teve lotação esgotada da carga). Foi um bom “a mais”. Quem viu os shows da banda no Brasil, em 2013, sabe que não é aquela maravilha toda e que funciona melhor em lugares fechados, com a plateia toda dela, mas não é pra se jogar fora. Vale aquela hora de dream pop tímido.

O grupo mostrou faixas dos seus dois discos, “Beach Fossils” (2010) e “Clash The Truth” (2013), pra uma audiência já bem maior (eram três da tarde). Alternou momento de sutileza, “Careless”, com barulhos bacanas no começo de “Calyer”. Inofensivo, mas decente.

Veja “Calyer”:

Veja “Shallow”:

Vale falar um pouco dos palcos e do som. Com a disposição alternada, os shows dos palcos principais não atrapalhavam uns aos outros. E o som estava alto, cristalino, potente. Talvez pelo espaço local ser pequeno, essa potência seja melhor percebida (talvez esteja falando asneira aqui). Mas o som do terceiro palco, o menor, o que ficava após as piscinas fechadas, esse vazava o som pros palcos grandes e vice-versa. O vento fortíssimo, ajudava a carregar o som. É possível ver a ação do vento em todos os vídeos que estão nessa resenha.

O Palco Rosen (o que tocaram o Beach Fossils, o Boogarins e o Real Estate), por exemplo, teve sua testeira totalmente arrancada pelo vento. Isso fez com que um alpinista da produção (e eu quero crer que seja alpinista pelo perigo de subir àquela altura) tivesse que subir pra completar o serviço e, mais importante, fez com que o telão de fundo de palco ficasse só mostrando a marca do patrocinador, ao invés das imagens do show.

Mas o vento seria protagonista mais tarde.

Antes, tive que me abrigar no uísque com ginger ale pra não ter que enfrentar o Kakkmaddaffakka, que veio na sequência. Se você, nobre leitor, tiver conhecimento de algo mais constrangedor do que isso num palco, favor me avisar. Que troço horrível! Triste demais. Mas a plateia, agora em maior número (o show começou às quatro e quinze), parecia, pelo menos uma pequena parte, se divertir. Esse pessoal deve ter tomado algo na veia, algo que desconheço…


Real Estate


Real Estate

Eis, pois, Real Estate. Tinha certa expectativa pra ver a banda ao vivo, porque considero “Atlas” um dos grandes disco de 2014. Um baita disco, com algumas das melhores canções assobiáveis do ano. E, de fato, a banda começou bem, com “Had To Hear”, “Fake Blues” e “Talking Backwards” na sequência. A já farta audiência viu o melhor show até ali.

Mas a banda, que ficou limitada à uma hora destinada a ela, faria melhor no dia seguinte, no Cerro Bellavista, um local mais intimista, ela como protagonista. Não vi pra comparar, mais a imprensa local sentenciou dessa forma.

Veja “Had To Hear”:

Na sequência, veio o ex-Kings Of Convenience, Erlend Øye & The Rainbows. Ele tentou de toda forma animar a grande plateia a sua frente, com músicas dançantes, fofinhas e animadinhas. Conseguiu. Mas não tenho certeza se as pessoas já pulavam pra espantar o frio que o insistente vento trazia (note: já eram cinco horas de vento constante e a temperatura que começou nos trinta e cinco graus já estava nuns vinte, senão menos).


Erlend Øye & The Rainbows


Erlend Øye & The Rainbows

Foi melhor, pelo menos, que Yann Tiersen, o multi-instrumentista francês que veio na sequência e se mostrou totalmente deslocado na escalação do festival. Apesar dos seus dez discos na carreira, ele ficou mais conhecido como trilheiro de filmes hispters (como “Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain”, de 2001). Foi a hora de lutar contra o sono. Ou tomar mais umas pra apaziguar o frio que a noite tratava de potencializar.


Mogwai

E então… Mogwai. Como os escoceses seriam recebidos por uma plateia já pra lá da metade da energia gasta? E com um frio tremendo, já em torno de uns dez graus? Bem, não havia muito o que fazer, a não ser tocar alto, injetar barulho na veia da plateia.

Não foi exatamente isso que eles fizeram a princípio. Começaram com “Heard About You Last Night” e, acredite, o som do vento estava mais alto do que o dos instrumentos, como você pode perceber no vídeo abaixo:

Apesar do ótimo disco de 2014, “Rave Tapes”, a apresentação se fez com músicas de todos os álbuns. Destaque pra “Rano Pano”, “I’m Jim Morrison, I’m Dead” e, claro, “Mogwai Fear Satan”. O público respondeu bem também à nova “Remurdered”.

Mas o ápice se deu ao fim, com “We’re No Here”. A banda sai e deixa todos os pedais ligados por cinco minutos, numa ensurdecedor momento de noise que obriga muita gente e levar as mãos aos ouvidos, atordoados. O som estava alto, muito alto.

Veja “Rano Pano”:

O show do Mogwai foi quando o frio se fez sentir com força pela primeira vez, a ponto da produção arrumar cobertores (sim, cobertores!) e distribuir pro público. Ao invés de água, aqui se distribui cobertores. Cobertores que vieram com a gente de volta ao Brasil. Muito obrigado por isso.

Depois do Mogwai, nada mais estava na agenda pra gente. Resolvemos dar mais uma volta e ir embora, aproveitando que o grosso do público queria mesmo era ver o Tame Impala e a Icona Pop. Demos uma passada no palco eletrônico, bem cheio, antes de sair ao som do Lumineers (soando agradável, talvez pelo efeito do álcool em mim, o que é bom).

Foi uma escolha acertada. Pegamos o ônibus da volta sem perrengue algum, embora não houvesse informação ou sinalização de onde ele saía. Custou dez mil pesos (cinco pra cada), ou quarenta e dois reais. Voltamos confortavelmente pra Santiago, mas encontramos o metrô fechado (antes da meia-noite de um sábado!). O táxi foi a solução pra voltar ao hotel. Não faço ideia se houve complicação na hora de todo aquele povo sair junto, depois do último show, do Four Tet, que se iniciaria às duas da matina. Pela informação, haveria ônibus até as cinco da manhã.

O saldo foi bastante positivo. O Primavera Fauna tem muitas falhas na estrutura e na organização, mas são falhas que não incomodam porque há pouca gente, não é um festival inchado. Não é um evento-manada.

Havia conforto. Não havia filas. Nenhuma. Os banheiros eram limpos. E já a partir do começo da noite, havia também cerveja gelada, sem tumulto.

Historicamente, o Primavera Fauna tem boas escalações, bons nomes gringos pra alegria da rapaziada. E bom som pra que as bandas se apresentem.

Ou seja, parece-me que é possível fazer um festival médio ou pequeno, com uma boa estrutura e ainda ganhar uma grana – essa é a quinta edição do festival: será que as cinco edições deram prejuízo? Não creio.

Vá ao Chile na próxima vez e comprove você mesmo o que é melhor: o “aconchego” do Primavera Fauna ou a megalomania dos festivais daqui? Se isso pouco importa, e pra muita gente tanto faz mesmo, você ao menos fez uma bela viagem.

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