QUASAR – CORUJA

“Coruja” é o primeiro disco cheio do trio paulistano Quasar. Em 2016, a banda lançou o EP “Enquanto O Futuro Não Vem” (ouça aqui na íntegra).

Formada por Caio Gonçalves, Felipe Meneses e Guilherme França, a Quasar tem muitas qualidades e outras tantas falhas de uma geração que tem tudo a seu dispor: meios de produção, de divulgação, acesso à informação, estabilidade econômica (comparando-se com as gerações que produziram nos anos 1980 e 1990, o novo século é um oásis), liberdade de informação e alcance.

Mas, com tudo em mãos, a Quasar, como a maioria das bandas atuais, vive o que se chama de Síndrome do Poodle. A Síndrome trata daquela alegoria em que uma dondoca que pertence aos 1% mais ricos do mundo perde seu cachorrinho. O animal de estimação é o único em que ela pode confiar, seu verdadeiro amigo, companheiro, confidente. Um dia ele some. Ela não tem nenhum outro problema, nem de dinheiro, nem de expectativas de futuro e talvez até mesmo os filhos e o marido a amem como ela crê, então a perda de seu animalzinho é o único problema a lhe destroçar o dia a dia.

Enquanto as pessoas dos outros 99% têm todo tipo de pequenos e inacabáveis problemas, de ordem financeira, sentimental, política e social, num quadro em que perder o cachorrinho seria apenas mais um desses problemas, embora bastante angustiante, pra dondoca esse é o único que ela vai enfrentar. E nem por isso deve ser desprezado ou minimizado. A situação a machuca, a angustia, a faz chorar, de modo que a Síndrome mostra que nenhum problema dos outros deve ser desprezado, por menor e irrelevante que pareça pra você.

O trio paulista tem exatamente tudo o que os novos tempos permitem pra criação e propagação de sua arte. Não sem trabalho, é verdade, mas as ferramentas estão aí. Mas eis que em “Coruja” o que vemos são problemas existenciais genéricos sobre relacionamentos e desalentos pessoais. Num país em que os atritos sociais são férteis pra criações provocativas e provocadoras, numa sociedade onde a política se faz cada vez mais presente, com corrupção pipocando, políticos encrencados e cada vez mais manipuladores em defesa da própria pele e de seu lugar no poder, espera-se que bandas sem nada a perder, como a Quasar, fossem mais agudas na crítica política e social. Mas não: o relacionamento inviável é o seu poodle.

Não deixa, pois, de ser um problema pro criador. Se o relacionamento inviável é um problema pra ele, por que não cantar sobre isso? Ainda mais se banhado em sujeira sonora, como o Quasar faz em “Coruja”.

Em “Covarde”, eles dizem “Eu nunca fiz nenhum alarde / Eu sempre só me indignei / Nunca defendi nada nem ninguém / Nos últimos dias meu maior desejo é só não ser covarde / Queria ser que nem você / Que chora pro mundo ouvir / Eu não sei chorar nem pra mim”. É uma boa autocrítica.

Mas o resto do disco se resume a generalidades como “Nada mais importa quando você chega / Esqueço lá de fora, desse mundo gelado / E ao fechar os olhos me vem a certeza / Eu me sinto em casa com você do lado”, na ótima faixa de abertura “Aurora”. Fosse instrumental, seria perfeita.

Há no som do Quasar, em “Coruja”, uma impressão de distância, como se você ouvisse no seu isolamento um som distante. Ele carrega todos os ruídos da cidade, vindos de sabe-se lá onde, e chega imperfeito, distorcido. É o maior trunfo do disco. Um apuro técnico, um acerto de produção e tudo se esvairia. Até canções melosas como “Termo”, conseguem se banhar desse pó levantado pelas notas do Quasar.

“珠” (ao que parece, o equivalente chinês pra “pérola”) carrega uma forte ligação com o som da Lupe De Lupe, que coincidentemente, em “Quarup”, o discaço duplo de 2014 (ouça e leia aqui), mostrou ser uma exceção, com discursos político e social presentes e vibrantes, na mesma medida em que trata das agruras do cotidiano.

“Coruja” oferece mais duas boas canções: “Mudança”, com uma usina de ruídos de guitarras que encobrem o vocal (um dos grande problemas do Quasar é o vocal, como se ouve em “Nada De Novo Sob O Sol”, que também poderia ser só instrumental) e conseguem fazer a gente imaginar como seria o Los Hermanos se eles não fossem tão hospitalmente assépticos; além da instrumental “O Que Escrevi Atrás da Sua Foto”.

“E é a última vez / Tem que ser a última vez que vou pensar em todos vocês antes de mim”, cantam os três em “Desalento”, mesmo que no disco inteiro só tenham pensado na própria dor e não nos demais.

Ninguém é obrigado é discursar pelas expectativas dos outros. Quem quiser falar de política, que fale. Quem quiser fazer o seu “Que País É Esse?” ou o seu “Quarup”, que faça. O Quasar está ainda na fase de embates de relacionamentos. Pra algumas pessoas, essa fase nunca passa; pra outros, a maturidade e a vida dão um jeito. E não são poucas as grandes obras criadas a partir de corações despedaçados e mentes desoladas por um relacionamento naufragado.

O que se aprende com “Coruja” é que a Quasar é uma banda promissora a espera de maturidade – talento não se ganha com o tempo, se aflora se ele ali existir. Viver nunca é demais.

O disco saiu dia 12 de setembro de 2017, numa parceria entre os selos Pessoa Que Voa e Banana Records. A mixagem é de Guilherme França, exceto “Aurora”, mixada por Guilherme França e Nathanne Rodrigues . A bela capa é de Carolina Dantas.

01. Aurora
02. Termo
03. 珠
04. Desalento
05. Mudança
06. Nada De Novo Sob O Sol
07. O Que Escrevi Atrás Da Sua Foto
08. Contido
09. Covarde
10. Quando O Mar Não Dá Mais Pé

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