RESENHA: ANA FRANGO ELÉTRICO – LITTLE ELECTRIC CHIKEN HEART

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As aplicações dos mais variados contextos da música é o que dimensiona um reconhecimento temporal que pode ser escutado como uma justaposição flexível do que jamais poderia ser enquadrado pelo presente. Que este é uma simulação, ou (paradoxalmente) uma ideia ultrapassada, só conduz a uma saudade de algo que nunca existiu – o passado se constrói por palavras e sons, por artefatos humanos velhos que simbolizam um período que já passou. Isso é: quando se embaralha o jogo e miragens miméticas são construídas, não apenas se testemunha uma imagem perdida de um tempo produzido inteiramente pela criação, mas se está num furacão de engano e dissimulação em que apenas as reações, e tão somente elas, constituem algum tipo de verdade.

Se num tempo embaralhado só as reações, cerebrais ou instintivas, podem configurar sensações “verdadeiras”, talvez seja possível reagir uma música que se prova contemporânea (mas jamais presente!) justamente por aceitar essa confusão em que as distinções somam; o que está escrito numa roupa velha ganha tanta sonoridade quanto produções novas e rebuscadas.

Embora exista tal rebuscamento nesta produção, dela pode-se inferir um espaço em que as bifurcações musicais se justapõem como território livre pra criação e um ânimo surpreendente ao, em tão pouco tempo, incitar a memória e suas criações afetivas. A partir do olho do furacão, da confusão moderna, o reordenamento deste caos em sonoridades sensíveis testemunha uma música possível que reconfigura a experiência de mundo. Esse desenvolvimento traz novas narrativas de quem nunca esteve lá, de quem confia numa memória fantasma pra reproduzir uma música nunca tocada, uma música que sempre rondou espectralmente o imaginário brasileiro, uma música possível apenas a partir dum desordenamento de cores e cheiros.

As moléculas bagunçadas e a apreensão momentânea de suas danças intermináveis é o que tem caracterizado essa instituição fantasma que é a música brasileira. Lógico, recortes específicos auxiliam nessa construção, assim como indústria cultural, mas num período extremamente fragmentado como este surpreende alguém ainda reivindicar o que seria identidade nacional se não precisamente a bagunça e as produções múltiplas e contraditórias. A bagunça e a produção humana são configurações naturais que se reabastecem como uma miragem alimenta o ânimo de quem trafega pelo deserto. E ainda assim cria novas abordagens que constantemente são reconfiguradas por uma necessidade invisível da época em se expressar esteticamente, sentir temperaturas ainda mais extremas pra criar seu ecossistema. Em outras palavras, é que como se o mundo do “presente” exigisse que músicas como estas fossem produzidas e o atendimento, por parte dos artistas, fosse uma forma de homenagear a história da música nacional justamente transfigurando seus gêneros mais estabelecidos como desordem.

Especificamente, essa reconfiguração intervém de modo sintético numa música historicamente estabelecida (flexiona os medos e transforma-os em potências). Afeta as palavras escritas de modo a reescrevê-las a partir de um atravessamento, detalhando seus acordes e uma ideia falsa de estrutura fixa pra construir sua própria espécie de ciborgue. Como no caso de ver uma jiboia morrer no mar, como testemunhas ausentes de uma história imaginária que só pode ser contada por quem renuncia à caracterização tradicional.

Agora, com a ideia de oposição entre tradição e inovação erradicada, é que se pode construir tempos sobrepostos de uma música sempre disposta a ser modificada, sem medo de pertencimento, mas também como alguma localização fluída enraizada no imaginário de sua própria criação. É um pertencimento cuja origem é frequentemente modificada num processo de retroalimentação. Pra não mencionar métodos técnicos, acordes e produção, que recorrem insistentemente a modelos antigos pra reconfigurar uma ideia hipotética de “cronologia da música brasileira”.

Consequentemente, é numa época de justaposição de cronologias que algo como “Little Electric Chicken Heart” é possível. A viabilidade pra esse disco de hipóteses encorpadas, acordes insinuados em vários recortes da história de nossa música, surge de uma necessidade da época de manifestar sua herança de forma bagunçada – tanto em métodos canônicos de melodias e produção, mas também em uma lírica que esbarra no impossível; termos velhos que são ultrapassados por novas combinações improváveis.

“Little Electric Chicken Heart”, da Ana Frango Elétrico, cutuca esses diversos momentos da música brasileira de forma divertida, eliminando seus bloqueios muitas vezes fechados pra uma nova Era em que as unidades estruturais são capazes de realizar combinações não pensadas conforme a tradição. Reduz os diversos recortes e elimina as oposições que restringiam certas manifestações apenas a ensaios ou a uma suposta música experimental; natural e artificial, verdadeiro e aparente.

O movimento da Frango Elétrico coloca em cheque o que seria veneração, sátira ou uma simples forma de prosseguir honrando uma tradição – no fim, é tudo uma miragem que converge pra um tipo de música que só poderia existir em 2019. Mas mais do que isso, é um álbum de intuições e passos em falso num terreno que ainda não foi totalmente debruçado (e que jamais será).

1. Saudade
2. Promessa E Previsões
3. Se No Cinema
4. Tem Certeza?
5. Chocolate
6. Vinheta
7. Torturadores
8. Devia Ter Ficado Menos
9. Caspa

NOTA: 8,0
Lançamento: 12 de setembro de 2019
Duração: 29 minutos e 31 segundos
Selo: Risco
Produção: Ana Frango Elétrico e Martin Scian

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