Houve um tempo em que fazer música de protesto era algo sério. As nuvens pesadas pairavam sobre a cabeça dos brasileiros, com coturnos a chutar sua dignidade e cassetetes a esmagar sua liberdade. Com o apaziguamento político e social – pelo menos até segunda ordem, já que estamos num momento indigesto desde 2013 – a música passou a viver um distanciamento político nada nobre. As coisas estão mudando, como já observado. Não há paz que dure pra sempre. Não há tranquilidade que prevaleça sobre as instabilidades de uma sociedade sempre inquieta (o que é uma vantagem) e com memória curta (proposital ou por falta de estudo, o que é uma vergonha).
A dupla paranaense As Lágrimas (Fernando Theodoro, vocal; e Gustavo Paim, guitarra, baixo, eletrônicos) são, como todos nós, cérebros e pele, nervos e lágrimas de nossos tempos, sejamos nós velhos ou jovens, porque somos impactados por tudo de ruim e bom que acontece hoje, mesmo sabedores que tudo é consequência (que pode vir a se tornar causa, nesse ciclo infindável).
A música de “protesto” deles, em “Estamos Todos Nervosos”, é carregada de ironia, humor e, claro, crítica. A tentativa de não levar a sério as letras (de autoria de Fernando Theodoro) que parecem meras brincadeiras com jogos de palavras e situações cotidianas (atuais) se esvai por conta do peso da sonoridade. O pós-punk sujo e ruidoso da dupla carrega na via da seriedade e o ouvinte pode ficar na dúvida de qual lado ficar.
Desequipe as canções dos artifícios da guitarra e da bateria (por Michael Wiselque) e temos letras tão cruéis quanto divertidas – tanto quanto pode ser cruel e divertida a verdade.
“Códigos” é uma leitura tão óbvia da interação social atual, que chega a ser engraçada: “A gente se ama por códigos / A gente treta por códigos / A gente se odeia por códigos / A gente se come por códigos / A gente conversa em códigos / A gente se entende por códigos / A gente se veste de códigos / A gente é lido em códigos”. A gente sempre fez tudo por códigos (a língua falada nada mais é do que um código), mas hoje em dia mais do que nunca, certo?
“Nojo”, com seu baixo pesado e sua guitarra ríspida, é como se o Titãs fossem realmente ousados em “Cabeça Dinossauro”: “Eu tenho nojo / Eu tenho nojo de tudo / Eu tenho nojo / Eu tenho tesão em tudo / Deve ser que somos sujos / Ou que transamos no lixo (…) / O trabalhador braçal tem sua força explorada pelo capital”. Eu me divirto tanto quanto em “O que”, a poesia minimalista de Arnaldo Antunes que fecha o disco clássico tiânico.
“No mundo ocidental / Todo mundo se agride”, é a parte de “Mundo Ocidental” que deixa bem claro em que ponto nós chegamos na panaceia capitalista, onde todos se preocupam “com o próximo”, mas se puder arrancar-lhe o último centavo, o fará.
É curioso como tal visão estritamente negativa do mundo veio com uma abordagem bastante leve e divertida (na poética) e esmigalhada (na sonoridade). Não é só música pop, afinal de contas, é a construção da visão de um todo com elementos que nos constroem – ou, no caso, que constroem o artista.
Esse equilíbrio cai na reta final do álbum. “Cuida Da Minha Alma”, sombria, “Anjo Do Amor” e “Perdendo A Sua Atenção” ganham uma “seriedade” que não existe nas irmãs anteriores. Musicalmente, porém, elas se tornam mais experimentais e sombrias, como se a ressaca tivesse batido pesado na brincadeira toda.
“De 30 em 30 anos / A gente canta a mesma coisa / O futuro acabou”, eles cantam em “O Futuro Acabou”, e não há frase mais racional em todo o disco e em toda música jovem e em toda música metida a revolucionária e em toda música que se tente inconsequente. Vamos rasgar o passado, vamos construir um futuro novo. Uma ova! Ninguém quer nada disso. Todo mundo só quer se divertir, uns fazendo barulho, porque vêem o mundo torto; outros dançando, porque é assim que viajam; outros cantando flores, coraçõezinhos e sexo, porque acham que a vida é isso. Mas todo mundo quer se divertir.
As Lágrimas dão uma cota de cada visão (“Os Vasos” é puro deleite de ironia; “Cuida Da Minha Alma” é puro noise) e se divertem com todo o resto, porque se divertir agora, diante de um mundo com futuro incerto, é único protesto possível.
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01. Carinho Sinistro
02. Códigos
03. Nojo
04. Mundo Ocidental
05. O Futuro Acabou
06. Os Vasos
07. Feio Por Fora
08. Cuida Da Minha Alma
09. Anjo Do Amor
10. Perdendo A Sua Atenção
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NOTA: 8,5
Lançamento: 24 de maio de 2018
Duração: 30 minutos e 30 segundos
Selo: Meia-Vida
Produção: As Lágrimas e Michael Wilseque