Comprimida entre guitarras que parecem querer sair de um sufoco, a introdução do álbum surge como uma amostra sintomática de um tipo de rock cheio de energia e pé nos anos 1990. Mas gradualmente a banda revela-se como um núcleo capaz de ir por várias sonoridades, de modo que as canções evadem de sua proposta inicial pra algo mais vasto. As músicas, que se iniciam mínimas, perdem essa característica pra explodirem por uma catarse – é nessa dinâmica entre quieto/alto que o álbum circula. São favorecidos arranjos dinâmicos que permitem a introdução de novos instrumentos e uma queda pra participações vocais ainda mais melódicas. A força criativa do Boreal é evidenciada também nessas evasões, principalmente do que pode surgir na tensão entre os momentos mais tradicionais e o surgimento de algo inesperado.
Essa criatividade encontra também catálise nos momentos ditos “tradicionais” e eles são revisitados de maneira diferente quando passaram por uma transformação anterior. Esse conceito de “transições” sedimenta uma trilha de maravilhas possíveis, porque – abrigando exterioridades e transformações – nunca se ouve as músicas da mesma maneira; seja por uma explosão de guitarra ou por uma gaita trocando todo o andamento da canção.
Movendo-se nessa trilha de desajustes, as tentativas do Boreal mantêm o ouvinte ansioso pelas próximas mudanças, porque elas são garantidas. A criação de uma ambiência bem específica embala o disco; as guitarras arranhadas, os vocais calmos, as entradas esparsas pra momentos que beiram o improviso.
A revisitação de vários momentos no álbum fideliza uma característica expressiva em que o ouvinte caí num paradoxo; ele é pego de surpresa, mas também já estava entrando no clímax da construção. São individualidades que não se anulam, elas se auto-alimentam.
Às vezes, Boreal surge como um mundo de encontros com objetos inapreensíveis, como se estivessem sempre em contato com ecos de outras ressonâncias. “Nova”, a segunda faixa, talvez seja em que a mudança mais surpreenderá – desembocará em um caminho meio distorcido pra voltar à sua rotação antecessora. “Start” também surge comprimida num sufoco, com a música intencionalmente retida em versos bonitos de guitarra. Movimentos contrários que coexistem pra multiplicar as direções.
A produção auxilia nesse transbordo de coexistências, o fato de o disco soar como uma banda ao vivo que possibilita o encanto com a densidade instrumental. É ingerido, nos calmos e melódicos vocais, uma estrutura instrumental que potencializa as próprias letras, alçando-as a outro significado. Essa entrega vocal – que às vezes acompanha, às vezes contraria o plano de fundo sonoro – também caracteriza novas expressividades ao todo instrumental.
A originalidade, que parece tão improvável ao se falar em nomes do rock alternativo, é encontrada justamente porque o disco parece surgir de tensões que se abastecem. Como se fossem microcorrupções que criassem frestas pra outras abordagens entrarem. São diversas linhas que ilustram a sede por novos caminhos e propostas inventivas da banda. São vários enredos que formam uma massa sonora embrenhada, cheia de sons bonitos, entradas, saídas e labirintos.
Como músicos, o Boreal aparenta querer salientar sentimentos pungentes, e é por isso que não há receio em otimizar todos os momentos nas canções pra perceber se é possível encontrar catarse em cada instante, calmo ou raivoso. Seriam coisas vazias de se explicar ou mesmo entender, é preciso haver certa confusão pra melhor se relacionar com todas as dimensões que se mostram possíveis. Elas não se evidenciam diretamente, nem poderiam – são poderosas e complexas demais pra isso. Da teia de similaridades inaugurais que as músicas se afastam, pra explodir e liberar tudo o que não pode ser transmitido pelo simples verso-ponte-refrão-outro.
A construção é de um espaço de evasões e constantes reentrâncias. Uma fachada que transmuta sons, absorvendo – lentamente – mudanças que de repente se mostram gigantescas. Eles trabalham de forma calma tendo certeza de seu próprio transtorno. São sentimentos arremessados e misturados até que moldem um enigma escondido que se impõe fortemente, como se fosse alheio a alguma lógica.
E embora possa parecer redundante e prolongado falar do disco que abriga tantas contrariedades, é necessário relatar esses desencontros. Estes não são prolongamentos desnecessários, mas desenvolvimentos de uma banda que entende a necessidade paradoxal de articular a si mesma.
O contexto sonoro aprecia uma longa gestação, uma produção que envolve diferentes abordagens pra relatar a mesma dificuldade. Dos melhores nomes do rock alternativo dos anos 80/90 às coisas mais recentes produzidas no dream pop, só um tempo longo de criação poderia fazer deste disco de estreia algo original, algum tipo de som que se estendesse tanto que não poderia pertencer a mais ninguém. Uma base em que as influências surgem como potência criativa e transformadora, abrigando nuances suficientes pra caracterizar uma ambiência do Boreal.
Enquanto álbum, Boreal indubitavelmente ressoa um esforço fiel da necessidade representativa dos integrantes. Uma fidelidade mais adepta às suas confusões e catarses, que destoam o disco de um “indie rock” básico. Porque eles têm um notável senso de estrutura, mas também porque essa mesma técnica estrutural não se impõe como regra e é derrubada várias vezes. E enquanto é certo que isso surpreende os ouvintes, é ainda mais intrigante pelo fato de que representa constantes tentativas de rupturas. Em que o mundo é cada vez mais turvo e por isso abriga tantas possibilidades; que se somam, se retraem, se destroem.
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1. 7:37
2. Nova
3. Start?
4. Change
5. Home
6. Far
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NOTA: 8,0
Lançamento: 14 de janeiro de 2019
Duração: 30 minutos e 08 segundos
Selo: Independente
Produção: Boreal