Houve uma época em que pra eu chegar ao trabalho, descia do ônibus num ponto que ficava ao lado de um posto de gasolina. Nesse posto de gasolina, funcionava um lava-rápido e os funcionários estavam sempre passando um potente aspirador de pó que emitia um tipo de som que me lembrava imediatamente “Rollercoaster”, do Spacemen 3. Há um amigo que não pode ouvir um pio de certo passarinho (que nunca soube identificar), que logo lembra do samba de enredo da Caprichosos De Pilares de 2006, “Na Folia Com O Espírito Santo”.
Certamente, as pessoas que amam música, mesmo que não saibam tocar ou ler música, identificam tons, timbres e sons que remetem a algum arquivo da sua biblioteca musical mental. É um exercício involuntário, automático e divertido. Porque tudo é som, e tudo pode ser música.
As “experiências” sonoras (entre aspas porque não são projetos científicos, mas arte) de Cadu Tenório com as gravações de campo, pra ficar apenas num exemplo entre os preferidos aqui do site, sublinham um esforço de reinterpretação do autor da sua vivência cotidiana ou de fatos isolados. É como ele interpreta a vida na forma de ruídos e percepções sonoras. É preciso ser muito sensível e capaz pra conseguir transformar isso numa dimensão artística. Cade Tenório o é.
E foi com esses gatilhos de memória que comecei a ouvir “Santos 3AM”, disco da dupla Cæs, formada por Bruno Bortoloto e Guilherme Meduza. É uma obra de percepção e reinterpretação da cidade deles, Santos, no litoral paulista.
Santos é como o Rio de Janeiro ou qualquer outra cidade grande brasileira à beira-mar: tem o contraste significativo entre a beleza natural e a desigualdade profunda da sociedade de castas brasileira. A má-distribuição de renda, a violência, os resquícios da colonização, o calor, a miscigenação, o desemprego, o abandono, a riqueza de poucos etc. estão tudo no mesmo balaio, produzindo conflitos e sons a todo instante. Mas, a despeito da similaridade com outras cidades brasileiras, os sons obviamente são diferentes e mudam a todo segundo, todo dia e dependem dos ouvidos que os recebem.
A ideia de perceber e reinterpretar esses sons da cidade de Santos pareceu atrativo demais até mesmo pro poder público, que através do Programa de Apoio Cultural FACULT de 2015, da Secretaria Municipal de Cultura, apoiou o disco. Como não seria?
De certa forma, não teria como dar errado: gravações de campo procurando entender como a cidade pulsa sonoramente, dar forma a isso e transformar numa linguagem artística.
Como disse, não é fácil. É preciso sensibilidade pra tal. A tal “música torta brasileira” não é simplesmente um apanhado de ruídos jogados em trilhas de um programa de computador e unidos ao final. Há de se procurar uma lógica interpretativa – a do autor, claro – e jogá-las ao público que irá decodificá-la.
A dupla Cæs foi bem modesta nessas intenções. Ou bem simplista, alguém poderá dizer. Os temas sequenciados se mostram como um panfleto turístico que idealiza uma cidade que não existe, ou que mostra só os mais belos trechos da cidade, aqueles que importam pro viajante de fora tirar suas fotos e publicar nas suas redes sociais.
Há o “Trem Para Vicente De Carvalho”. Há a “Vila” Belmiro. Há o Teatro “Guarany”. Há a “Chuva Na Rua Direita”. E por aí vai. É de se destacar também a obviedade dos “ruídos” e gravações inseridas: vozes, idiomas estrangeiros do porto, gritos de torcida, o comerciante da feira, o barulho da chuva… Talvez todos esses barulhos, em qualquer lugar do planeta em que a dupla os ouça, remetam a esses locais que agora ela transforma em música. Não há como confrontar tal sentimento.
O caso é que “Santos 3AM” não passa o mesmo sentimento ao ouvinte, mesmo que durante toda a obra, ele seja presenteado com belas melodias, com um instrumental relaxante e prazeroso (“E O Resto É Silêncio” é a melhor da obra). Melodias que remetem à pluralidade de estrangeiros e migrantes que chegam ao maior porto do país: há horas que, por exemplo, se enxerga na França “Trem Para Vicente De Carvalho”; um tanto de Portugal em “Guarany”.
A pouca ousadia no uso das gravações de campo, coadjuvantes em todo o disco, acaba minorada pelo tocante desenvolvimento musical em si. Entretanto, não se esvai a sensação de uma trilha sonora turística. Imagina-se a todo instante imagens de um curta fictício (e “antigo”) sobre a cidade (a dupla afirma que o curta-metragem “O Porto De Santos”, de Aloysio Raulino, feito em 1978, é uma das inspirações do disco). Pode-se encarar isso como um elogio, é claro.
Mas faltou a “Santos 3AM” o confronto real, o ruído que incomoda a música-padrão, como a profunda desigualdade das nossas cidades incomoda a lógica cidadã.
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01. Cæs – Santos 3AM
02. Trem Para Vicente De Carvalho
03. Vila
04. Guarany
05. Avenida Dos Portuários
06. Feira
07. Santos – Valparaiso – Montevideo
08. Paralelepípedos
09. Chuva Na Rua Direita
10. Vento Noroeste
11. E O Resto É Silêncio
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NOTA: 5,5
Lançamento: 8 de dezembro de 2017
Duração: 49 minutos e 11 segundos
Selo: Independente
Produção: Guilherme Meduza e Bruno Bort