O nome Caetano Veloso tem sido falado desde sempre, aparentemente. É impossível dimensionar apenas a superfície incomum do artista. No meio de tanta gente, ele é uma revelação profunda de uma musicalidade que se confunde com a própria contemporaneidade das transformações técnicas e culturais da música brasileira.
Mas eu não posso me livrar da sensação de falar sobre o Caetano silencioso, quieto e melancólico que tenta nos fazer escutar, essencialmente escutar, e não apenas admirar sua erudição ou suas múltiplas referências. Certo ou errado, é um ponto de vista que deveria ser mais investigado, pois é um músico que saúda momentos extintos, tentando reencontrar, nas tramas perdidas do tempo, um desfecho redentor.
Ambos artistas no disco não querem surpreender ninguém, fisgar audiência alguma, mas criar uma paisagem que parece cruelmente inocente nas disparidades com as quais convivemos. Talvez as vozes guardem o mesmo rigor, mas elas não escapam dos discursos, que se apresentam imensamente tristes porque configuram uma beleza vista que é simplesmente impossível no horizonte iminente.
O resultado é uma intimidade que, saudosa, olha tempos esquecidos na espiral dos acontecimentos. Aqui, os mesmos versos de um Caetano que olhava esperançoso para a reconfiguração de um projeto de país, soam como uma tarde fantasmagórica, em que se perderam tantas pessoas e as canções deixam um sabor amargo.
Em outro lugar, estes versos simbolizariam um mundo reconduzido com sucesso – neste plano, no entanto, parecem como um retorno permitido por uma dupla que tenta gerar a imagem do amor por gestos revisitados. “Você Não Gosta De Mim”, por exemplo, soa tão dolorosa e desesperançosa não apenas por sua triste letra, mas muito em função da conjuração penetrante do clarinete de Sacerdote e os acordes, tão simples quanto diretos, de Caetano. Ele faz as linhas “Não posso crer que o ciúme/ Torne alguém imune ao desamor/ Então, por favor/ Evite esse costume ruim” soarem despersonalizadas e, estranhamente por isso, comoventes. Porque não há mais nenhum destinatário que a canção ganha uma chama simbólica de “cantar por cantar”.
Caetano lamenta as esperanças estilhaçadas pelo que a sociedade se tornou, cantando canções que mal resvalam na política. Elas se localizam entre Salvador e Nova Iorque, pois foram gravadas ao vivo nesses locais, mas são uma rachadura de beleza de um país que nunca se concretizou completamente. Ele, como a gente, olha para as festas como confirmação do que o país é pelas suas celebrações e geografia, mas há o fantasma inescrutável da História (pelo menos pra mim) sempre que suas canções tocam – sejam elas quais forem.
Há uma comunicação ruidosa na música cristalina da dupla, há promessas mortas em gestos que deveriam inaugurar um poder transformador. A tristeza é, de fato, senhora, e “desde que o samba é samba, é assim”.
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1. Peter Gast
2. Aquele Frevo Axé
3. Trilhos urbanos
4. O Ciúme
5. Você Não Gosta De Mim (Ao Vivo em NY 2019)
6. Minha Voz, Minha Vida (Ao Vivo em NY 2019)
7. Onde O Rio É Mais Baiano (Ao Vivo em NY 2019)
8. Desde Que o Samba É Samba (Ao Vivo em NY 2019)
9. Manhatã (Ao Vivo em NY 2019)
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NOTA: 9,0
Lançamento: 16 de janeiro de 2020
Duração: 38 minutos e 08 segundos
Selo: Uns Produções e Universal Music International
Produção: Ivan Sacerdote, Caetano Veloso e Letieres Leite