RESENHA: CAMA ROSA – EXAUSTA/220V

O Cama Rosa parece testar a exaustão como procedimento repetitivo que, no ato contínuo de sua repetição, é capaz de propiciar uma abertura pra manifestação. O gênero impregna em si mesmo com marcações arrastadas, que extrapolam as sonoridades típicas do rock pra transformar o “faça você mesmo” num circulatório exercício investigativo. A postura não negocia “conceituações” ou narrativas, ela evidencia-se como enigma que apenas na constituição de mistério pode ser atravessado. Então, ouvir o Cama Rosa é incomum no sentido de que nada nunca vai ser explicitado, a não ser o processo repetitivo de evidenciar a circulação.

As reminiscências, brevemente interrompidas por barulhos bruscos, iniciam também outra repetição de modo que a derivação sonora contínua constitui labirintos entre labirintos. Na primeira peça, “Exausta”, o fechamento como procedimento de recuo, em que a queda do volume inaugura outro início dentro do círculo sonoro (por isso há várias “partes” na mesma faixa). Nesta música, as escolhas demonstram como é possível atingir a mesma indefinição através de sons diferentes, mobilizando o centro disforme como único alvo possível. Esse mote apresenta-se como resultado instintivo; é no espaço pra complemento entre Cindy Lensi e Bruno Trchmnn (outrora Trochmann) que eles chegam à origem indeterminada, o lugar em que eles só podem ser levados pelo som um do outro, como impulso criativo e como circulação no mistério.

O Cama Rosa pode até propiciar “ambiências”, mas é tudo incidental no nível de ser mais resultado de uma confabulação do ouvinte do que um fenômeno decorrido da dinâmica sonora da dupla. Mas também isso é parte colateral da repetição exercida: a ausência conceitual não retira de circulação a construção instintiva de um espaço cocriativo. Com inclinação à no wave, o Cama Rosa orienta o ouvinte avançando entre ciclos sonoros. Neste disco, a dupla faz da interação cocriativa entre eles um espaço de imersão em que qualquer ambição é reduzida perante os sons apresentados (leia também sobre “Gato/Angular”, disco de 2017).

De muitas maneiras, o som mais direto trabalha com avanços e recuos entre os instrumentos. A repetição misteriosa também existia em “Gato/Angular”, em que transitar em torno de algo de diversas formas estipulava a compreensão do enigma através de sua exaustão. Mas neste álbum essa impressão surge após o arrastamento das frases de guitarra na primeira peça, lá pelos seis minutos. Em “Exausta”, percorre-se vários setores: as distorções da guitarra, as frases melódicas desta, as batidas repetidas, o livre-improviso. Os procedimentos alteram-se, mas o sentimento permanece. Os versos evidenciam-se e terminam, os ecos continuam. A abordagem radical de instrumentação convencional é o que estimula a permanência.

Como as melhores indeterminações, a dupla elabora um enigma contínuo através do desdobramento interativo. Ouça “220v” depois dos nove minutos: é uma “melodia” feita de resquícios, liderados pela bateria minimalista e uma guitarra que repete os versos, aguardando um deslocamento que não se sabe se surgirá ou deverá ser instituído racionalmente pelos músicos. A bateria mínima não parece reagir à guitarra, mas criar uma espécie de base pra seu desenvolvimento. Da mesma forma, a excitação surge dos momentos eventuais em que a bateria é acelerada e os acordes ficam diretos como numa música punk (afinal a dupla se autointitula punk abstrato).

O álbum sucede em entrecruzamentos que ambientam o ouvinte em fragmentos (ora mais abstratos, ora mais diretos). Os primeiros momentos da primeira faixa fazem o ouvinte escutar uma abordagem que perdurará todo o disco, mas sempre se manifestará como outro ciclo, outros sons: a prática de distorção prolongada soma-se aos acordes repetidos e cria outro labirinto e daí em diante. Enquanto essas “canções dentro de canções” multiplicam uma efusão sonora pro ouvinte, elas não capturam inteiramente um cenário possuído pela repetição – como se não fosse possível adentrar a “áurea repetitiva” inteiramente. Nesses momentos, a dupla espelha um estranhamento a partir de sua própria metodologia.

Cama Rosa permanece como um projeto de ilusões criada a partir de um procedimento metódico, porque a imprevisibilidade brota da dupla não pra explicitar algo, mas conduzir a outros labirintos. Poucos trabalhos optam por esse mergulho em que memória instrumental, interação e método se unem. Mas nessa agitação é possível retroceder a um estranhamento que se transforma em distanciamento. Como o título sugere, a repetição leva à exaustão e daí seja possível talvez ver/ouvir as coisas de um jeito menos apressado. É um trabalho cuja experimentação remete ao desgaste da maioria das fórmulas ao mesmo tempo em que esboça um espaço pra se abrigar delas.

1. Exausta
2. 220v

NOTA: 7,0
Lançamento: 27 de abril de 2018
Duração: 34 minutos e 17 segundos
Selo: Independente
Produção: Cama Rosa

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