RESENHA: CÁSSIO FIGUEIREDO – EXPURGO

Em seu novo trabalho, o carioca Cássio Figueiredo explora diálogos internos em ambientes conturbados e, às vezes, pela enorme massa sonora, intransponíveis. Logo de cara, temos um problema: como expelir coisas tão íntimas em ambientes que, mesmo tão grandiosos, nos enclausuram? Ao mesmo tempo em que o sujeito quer ascender, ele é paralelamente maravilhado e interrompido pela vastidão. Os nomes das canções, em sua maioria, tratam de ações e insistência. A experiência que eu tive na primeira audição de “Expurgo” é um paradoxo perturbador: eu quero ascender, eu estou fechado. Não se trata de uma questão filosófica apenas, mas como se inserir em outros lugares que não a realidade? Talvez o ato de expurgar exija mesmo frequentar os lugares mais inóspitos, como na pedrada que é “Entortando, Entortando, Entortando, Maquinando O Composto, Desviando Da Ilha”, em que somos arremessados pra “Rua São João De Frente Pro Terminal”, em um ambiente translúcido, muito parecido com alguma disfunção cerebral em um dia qualquer.

A trajetória fica ainda mais abstrata e conjuntamente obscura em “Os Cheiros Das Épocas E Os Lençóis Que Me Cobriam Eu Chamava De Atmosfera”, em que vemos que a limpeza do sujeito do disco pode muito bem ser feita em favor de sua perspectiva que mais desafia o real. Ou, ao menos, quer testar sua própria concepção de realidade, em um processo de desenvolvimento bem devagar e multifacetado que tem como única missão despedaçar qualquer ideia de integridade. A intensidade de “Expurgo” não está apenas em seus ruídos, mas na maneira em que todas suas captações nos imergem em contrariedades, desencontros com o instituído – todas essas deformidades que deveriam nos tornar transtornados, são encaradas pelo Cássio como o único processo possível de limpeza. São composições que se desintegram (e se integram) no avançar das peças. A única maneira de fazer qualquer limpeza é se dividir, se refratar, é se sujar de outra maneira.

Como em toda obra de Cássio, muitas coisas ficam abertas ao ouvinte: mas é preciso aceitar que, como em seus rifes de guitarra no final da faixa “Os Cheiros Das Épocas E Os Lençóis Que Me Cobriam Eu Chamava De Atmosfera”, nenhuma expurgação está livre de verdadeiros atentados externos. A guitarra de Cássio massacra a suposta contemplação obscura que foi construída, em prol de um barulho que remete a símbolos de cansaço de si mesmo, autodestruição (em pequenas partes, evidentemente).

Considerando o modo como a música é descartada e consumida hoje em dia, “Expurgo” se encaixa em conceitos incomuns pra evidenciar que os desvios não devem ser evitados. O peso de isolamento e o contraste formado na audição vibram no encorajamento enquanto todo o peso (além dos ruídos) é depositado em ações provocativas – o surgimento da guitarra, uma massa sonora contínua, as palavras faladas dificilmente reconhecíveis. Não é como se as sensações físicas são meditas em “Expurgo” – elas se baseiam em uma tensa fragilidade pra brotar do diálogo com o ouvinte. Surgimentos e desintegrações são ambos os aspectos que Cássio trata com certa admiração enquanto os ecos distantes permanecem sombriamente onipresentes (ouça “Os Cheiros Das Épocas E Os Lençóis Que Me Cobriam Eu Chamava De Atmosfera”, uma das melhores faixas do ano). Não é apenas sobre o ambiente incomum e a harmonia escondida nas canções, mas é espantoso como tudo pode brotar e sumir com a mesma força.

Pode apenas parecer conceitos irresistíveis de se tratar, mas Cássio está interessado em deixar evidente sua fascinação por esses temas e o nítido desconforto com alguns de seus desdobramentos. Como se as primeiras cinco faixas fossem uma construção pressentida (mesmo com seus inúmeros desvios) e as cinco consequentes uma adição de incidentes, em que as certezas são rapidamente reviradas e estruturadas em pequenos recortes urgentes. Porque Cássio não está interessado em investir em um arco dramático homogêneo, e mesmo a estrutura estranhamente narrativa que “Expurgo” carrega aos poucos se esfacela – não sem fascínio e certa incredulidade.

Há um exame de desistência aqui. De como podemos jogar tudo pro alto e simplesmente ficarmos abandonados e expostos em um terreno de incertezas. O que deixa claro: toda construção carrega sua carga corrosiva, todo ônibus tem uma partida indefinida. Cássio mostra que o espelho está em pedaços e mesmo assim acredita que suas inúmeras partes ainda merecem uma última representação. E aí se escondem sonoridades que carregam tremor e anseio frente ao desconhecido. Ao mesmo tempo em que são esses pedaços que mais causam ansiedade, são eles que vão sobreviver, não importa o impacto que sofram.

Sobreviver não é fácil; e é nos recônditos protegidos por uma modulação incisiva que Cássio reconhece certo medo e também caracteriza sua unidade (mesmo que dispersa).

NOTA: 7,0
Lançamento: 6 de julho de 2016
Duração: 34 minutos e 44 segundos
Selo: Seminal Records
Produção: Cássio Figueiredo

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