RESENHA: CÁSSIO FIGUEIREDO – LEMBRANDO ASPECTOS MORTOS

Eu cheguei a um ponto em que pareço não exigir absolutamente nada da música, quase todas segmentações tem interagido muito pouco comigo. Toda as minhas histórias sedimentam-se quando paro pra ouvir um álbum e todos sussurros ecoam em outro tempo. Cássio Figueiredo reverte uma imposição temporal pra ressuscitar fantasmas e emprestar a estes uma linearidade afetiva – que é certamente bela mas cruel ao evidenciar um ser tão frágil, com tantas poucas certezas. Mais: por que esta insistência com a memória?

A produtividade contínua tem cada vez mais apontado a memória perversa como fonte criativa e sua matéria bruta em um processo de polimento que efetiva multiplicidades escondidas sobre o peso da própria estrutura das peças (ruídos, tempos arrastados) como decodificação de um receptáculo de instantes que ele tem muitas dúvidas se pode mesmo se apropriar. E nem falo de “apropriar” em sentido estético, mas numa ordem superior. Eu suspeito que Cássio desconfia de sua própria presença em diversos acontecimentos de sua vida. Não quero afirmar que “Lembrando Aspectos Mortos” se trata de uma fórmula e sim de que é uma afirmação extrema da despersonalização do ente em plenos acontecimentos objetivos – a sexta peça com seus barulhos intermitentes evidencia uma desapropriação que parece muito cara ao compositor. É um racionalismo singular. É um saber objetivo da falta de unidade própria quando sua consciência se relaciona com suas supostas histórias – daí, a mente satura imagens criando uma combustão especulativa e é precisamente esta minha interpretação do disco: uma combustão especulativa saturada na falta de conexão com o vivido.

Neste sentido, pro músico, resta expor esta descaracterização de si mesmo em fragmentações musicais dispersas cujas agremiações possam, esperançosamente, unificar algo. É quando se está sozinho que estas abstrações tomam caráter prático. A tentativa de lembrar aspectos mortos caracteriza-se como esperança da retomada interativa de si com os objetos de afeto. A questão do que é supostamente natural é meramente secundária. O mais importante é tentar unificar a partir de elos perdidos.

Este sistema é reconhecidamente intrincado – surgem repetição de vozes em mais de uma língua, o barulho para e a voz não, a voz para e os ecos continuam. Eu acho irônico que a cada vez em que se tenta representar uma entidade mais simplificada os procedimentos criativos tornam-se excessivos. Isso é o preço de uma autoconsciência catastrófica. Não é que eu interprete a autoconsciência como um ato (pensar sobre si) macabro, mas as transposições desta relação dum si mesmo racional com um si mesmo afetivo são certamente embaraçosas pro criador e intrigantes pros ouvintes engajados.

Primeiramente, fora Temer, é formidável destilar estas percepções num conceito musical. Segundo, as peças aqui posicionam o ouvinte em um canto escuro. São objetos que evocam lembranças? São objetos claramente manipulados pra tentar suprir uma unidade descentralizada? São princípios de ideias musicados e bruscamente cortados? É algo puramente intuitivo? É uma manipulação simplesmente jogada ao acaso? Convenções sonoras? Uma lógica estética? Se meu argumento se fez claro, é precisamente a partir desta escuridão que podemos ser guiados. Estritamente falando: a música é monótona e dialoga com gestos (sussurros, sons aleatórios) pra, através da própria necessidade do diálogo, se afirmar como música.

Terceiro, em termos musicais a saturação repetitiva (com algumas distorções) atingem reconhecidamente o auge na última peça. O clímax (do ato) de lembrar, portanto, é trafegar num espaço denso em que os objetos são apenas silhuetas, resquícios do vivido ou apenas próprias criações do músico. A música, em si, é apresentada como materialização duma tentativa frustrada. Ela não apenas necessita do engajamento do ouvinte, ela dialoga com ele através dum lapso temporal. Chame isso de “lembranças”.

01. Sem Título
02. Nascimento
03. Lembrando Aspectos Mortos
04. Lembrando Aspectos Mortos
05. Lembrando Aspectos Mortos
06. Lembrando Aspectos Mortos
07. Lembrando Aspectos Mortos
08. Lembrando Aspectos Mortos
09. Lembrando Aspectos Mortos
10. Lembrando Aspectos Mortos
11. Lembrando Aspectos Mortos (fim)

NOTA: 8,0
Lançamento: 14 de fevereiro de 2017
Duração: 26 minutos e 25 segundos
Selo: Banana Records
Produção: Cássio Figueiredo

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