É preciso explicar. Nossa comunicação não é clara, tampouco linear, nem mesmo direta e objetivo. Os tempos são contraditórios, como muita gente não cansa de notar e afirmar: de que serve tanta ferramenta e canais de diálogo se o que menos existe é justamente o diálogo?
É a era de Narciso, do espelho, da auto-adoração, do deslumbramento social, das relações estéreis e etéreas, do fracasso do falar, do desmoronamento do ouvir e, acima do tudo, do desprezo pelo entender e compreender. As linguagens-padrão se tornaram futilidades descartáveis em prol da inconsequência linguística sob a máscara de certa modernidade preguiçosa e esfacelada cotidianamente.
O quadro é pessimista, mas a esperança, nunca o é. Há luzes no fim dos mais variados túneis que a própria sociedade abriu, entretanto ninguém parece disposto a caminhar até lá. Viver na escuridão do saber superficial é uma alternativa benquista e agradável. Não são as novas gerações, são todas as gerações vivas e (não) pensantes. Não coloquemos culpa nesse ou naquele indivíduo ou no grupo de indivíduos. O que existe é um efeito osmótico sem qualquer tentativa de contenção. A linguagem vai definhando pela simples falta de compreensão.
Ambiguidades. Esse é o efeito colateral, embora pouco importe se a mensagem tenha chegado com clareza e objetividade – algo raro. Do outro lado, várias maneiras de entendimento se abrirão pelo simples fato de se negar compreender ou querer compreender da forma que achar mais pertinente à sua própria lógica.
Dúvida. Explicação. Imprecisão. Precisão. Certeza. O universo dos ruídos comunicacionais é obscuro, algo assustador nas causas e, fatalmente, nas consequências. Megan Mitchell, música originária da Califórnia, traduz essa nebulosa em música de um jeito bem peculiar – e preciso: é na escuridão do não-entendimento entre pessoas que estão as notas de sua sombria e quase vegetativa música. Nas nove músicas de “Disambiguation”, seu primeiro trabalho como Cruel Diagonals, o ouvinte parece adentrar o cérebro durante esse breu angustiante que nos reduz ao que essencialmente deixamos de ser quando falamos e nos comunicamos com inteligência, centrados e objetivos: animais irracionais. Uma sonoridade dark, uma eletrônica quase gótica, como um Pink Industry em ritmo hiperdesacelerado, eis a sua tradução de tal universo.
A irracionalidade que escurece as relações tem efeito perverso no desenrolar da própria sociedade. E coisas que inventamos com nossa dita inteligência, ganhando nomes, termos, grafias idênticas, mas com significados diferentes, também precisam de um nome pra isso, porque ao nomear tudo achamos que vamos nos entender. Mas não há vocabulário pra tudo, às vezes há um conflito e é preciso desambiguar.
Mitchell não tem pretensão alguma de explicar nada. A artista sonoriza a falta de encaixe. A angústia do não-entendimento. O curioso é que até pra isso criamos padrões – a música é um dos padrões que dominamos desde sempre – e abre-se nesses padrões mais brechas pra entendimentos diversos – a música ou qualquer arte não pode querer ser objetiva no nível mais amplo. Então, Mitchell também trafega pela via da contradição. Mas isso só transforma “Disambiguation” numa obra ainda mais fascinante, por não se resumir ao que se pretende ser, nem comercialmente, nem artisticamente, nem mesmo socialmente. Ela é um objeto que comunica e que não tem o menor controle de como o receptor vai compreender ou, como bem sabemos, se vai de fato compreender alguma coisa.
Ou como se ouve em “To Ward”: estamos hipnotizados (e eternamente fascinados) pelo fato de conseguirmos algum tipo de expressão. O que acontece daí pra frente é pura sorte.
1. Innate Abstraction
2. Oblique Ritual
3. Malaise Vague
4. Enmeshed
5. Render Arcane
6. Soporific Return
7. Liminal Placement
8. To Ward
9. Intent To Vacate
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NOTA: 9,0
Lançamento: 13 de julho de 2018
Duração: 43 minutos e 32 segundos
Selo: Drawing Room Records
Produção: Megan Mitchell