RESENHA: DOUGLAS GERMANO – ESCUMALHA

O Brasil é um projeto que não deu certo. Não como nação, nem como sociedade. Temos aí um porcento, dez por cento, vinte milhões que vivem com certa dignidade, sem sobressaltos, sem correr atrás do próprio rabo, sem vender o almoço pra pagar o jantar. O resto é o resto, que ou se vira, ou vive no fio da navalha, com nada, com o suficiente ou com pouco pra poupar. Dentre esses, existem ainda os que enfrentam situação indizível, invisível, jogados à sorte do destino, porque a própria sorte não dá conta. São a sobra da sobra, a ralé, a escumalha.

Pra além do sentido pejorativo, um relegado, exposto às traças, a escumalha é o que faz do Brasil o país verdadeiro. Sem camisas amarelas de uma seleção de futebol que nem brasileira é, sem apaixonadas defesas ideológicas típicas de bolhas das classes privilegiadas, sem preocupações senão o agora, a escumalha faz do Brasil o país rico e criativo que vai impactar os “de cima” tempos depois, porque é o país vívido, borbulhante e expansivo.

“A brasilidade que transborda das canções deste trabalho/gira de macumba é tudo aquilo que o Brasil oficial e colonial odeia”, escreve Luiz Antônio Simas, no encarte de “Escumalha”, o terceiro disco de Douglas Germano. “Por aqui, passeiam sentidos, afetos, sonoridades, rasuras, contradições, naufrágios, ilhas fugidias, revoada de maracanãs e picadas de marimbondos: saravá e samba”.

Samba, samba e samba. Samba de um cara que admite não entender, nem gostar de rock, mas que mesmo assim conseguiu furar um pouco essa bolha, em parcerias com Kiko Dinucci, do Metá Metá; por conta de Elza Soares; e que acabou, por conta dessas conexões – e infelizmente talvez só por isso – em blogues e sites “descolados”, na boca de “formadores de opinião”.

Douglas Germano faz um disco sobre quem não faz a menor ideia do que essa discussão trata. São os brasileiros fora das bolhas. O Brasil varonil. O Brasil do chapa (profissão que sobrevive apesar dos Waze e Google Maps), das lavadeiras que acordam às três da matina pra trabalhar, do “escangalho no peso do malho que forja a nação”. De Espedito, Maria, Irineia, Izabel, Ana, Antônio, José, Diomar, Manoel, Raimundo, Francisco, João, Josué, Benedita, Sebastião, Waldomiro, Saúba, Chalé, Nuca, Zefa, Cizin, Louco, Conceição, de tias, avós, avôs, lavadores de carro, extrator de calos secos, cravos e verrugas, varredores de rua, arrumadeiras, anunciantes de xerox, de frente de loja, malandrões, viradores.

Com um samba ora potente, da tapa-na-cara de “Babaca” (“porque na mão grande, meu bem / aqui ninguém vai se dar bem / você vai ter que se esconder de nós”), ora belo, de “Chapa”, “Maria Da Graça” e, principalmente, de “Tempo Velho”, Germano se aventurou num dilema cruel pra quem se propõe a falar desse Brasil: correu o risco de reforçar uma caricatura, de sublinhar uma estética da pobreza de quem não vive na pobreza, ao mesmo tempo em que não poderia se distanciar muito, com a possibilidade de soar falso. A solução talvez tenha sido buscar na memória, na hereditariedade social, seu conhecimento. Como viveu tios, avós, pais de amigos, conhecidos, ou sua própria família – a família de brasileiros que o Brasil odeia ou que só serve pra discursos.

“Ratapaiapatabarreno”, um aforrozado e divertido samba, talvez seja o resultado desse medo: caricatura do abrasileiramento, ao mesmo tempo em que resume o processo de migração e urbanização de décadas e décadas. O Brasil é tudo isso.

Germano, formado em bateria de escola de samba (no caso, Nenê Da Vila Matilde), apreciador da leveza de Paulinho Da Viola (“Insignificâncias” é puro Paulinho), trabalhador em publicidade por necessidade, é também fruto dessa mistura de todo brasileiro que precisa se virar e se torna o que é. Mas está acima da “escumalha” retratada: seu disco anterior, “Golpe De Vista”, de 2016, acabou em muitas listas de melhores daquele ano. Germano é cult. Estaria ele também distante do que retrata? O dilema dá voltas e não se encontra respostas. Ao apreciar “Escumalha”, o ouvinte pode reforçar esse distanciamento com sua própria experiência e isso já não mais importa.

Os brasileiros invisíveis seguem por aí. Mas o “Brasil oficial tem verdadeiro horror ao Brasil da brasilidade, nosso rancho dos fodidos, lanhados, exterminados, encantados, contra o vento, o rei, o altíssimo, a foice, o facão, o canhão e o arado”. Germano, não: ele exalta esse país e “Escumalha” é sua ode a esse Brasil.

Clique aqui pra ouvir o disco na íntegra.

01. Àgbá
02. Valhacouto
03. Vil Malandrão
04. Babaca
05. Escumalha
06. Chapa
07. Marcha De Maria
08. Ratapaiapatabarreno
09. Insignificâncias
10. Tempo Velho

NOTA: 9,0
Lançamento: 17 de maio de 2019
Duração: 37 minutos e 20 segundos
Selo: Digitalize
Produção: André Magalhães e Douglas Germano

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