RESENHA: EARTHEATER – IRISIRI

Aqueles que reconhecem nos resquícios um discurso periférico querem falar sobre os seres que vivem espectralmente. É um diálogo oco, é local em que a representação se manifesta e esse próprio movimento evidencia ausência. Mas esse local tímido, como as vozes do disco, pode apreender uma solidão fundamental compartilhada pelos seres humanos, um isolamento no qual o ser se resguarda pra suportar o arremesso no mundo.

“IRISIRI”, de Eartheater, é configurado por murmúrios perpétuos que abdicam do enigma da codificação pra emergir a cada estilhaço. As imagens antecedem outrem, pois estabelecem relações antes da subjetivação personalizada. Eartheater rumina em todos os instantes a partir de um isolamento que é tão palpável quanto distante: aquele por onde todos passam, distante em função de o Outro sempre ser uma abstração inapreensível da primeira pessoa. Nós conhecemos tanto o lugar do resguardo quanto a distância indiferente.

Os dias passam e perdemos contato a ponto de perguntarmos de que matéria eram feitam as coligações que existiam. O que as fundamentava? Identifica-se com o esfacelamento e a corrosão da matéria, ambos onipresentes e manifestando-se cronicamente. Nós vamos pra um lugar paradoxal: recuperar o passado é impossível, expurgar seus fantasmas também. Todos que nós perdemos estarão presentes em incorporações mutiladas preenchendo um lugar saturado pela abundância de espaços-vazios. Ou eles conseguirão encontrar-nos em sua plenitude e poderemos conviver com os resquícios em paz.

Onde a empatia pelo que foi perdido pode nascer? Como o amor aconteceu num terreno tão hostil (em que cada um convive com imenso pesar)? Eartheater suplica. Eartheater hesita, como se a não consumação do porvir a enlouquecesse. Eu imagino que pra ela o dia e sua claridade ocultem tanto quanto a noite e sua escuridão. Nós vamos transcender essas formas e senti-las apropriadamente, como elas merecem (os produtores de música eletrônica podem decodificar seus próprios instrumentos. Considere que os sons se manifestam minimamente, orquestrados por belas harmonias que contrariam a simplicidade da voz. Eartheater manifesta uma falta de preocupação com as construções convencionais, porque brotar a cada instante é seu principal objetivo).

Então, talvez o cemitério é mesmo o lugar pra coreografias invertidas, em que as mãos fazem a vez de pés e possa surgir do horizonte centralizado alguém que evoca um novo tipo de nascimento. Alexandra Drewchin, que é a Eartheater, surge, no videoclipe de “Claustra (Pan)” (faixa que não está no disco), como alguém que vai se unir a uma espécie de manifestação-macabra de si. Se Alexandra Drewchin faz uma coreografia sem comparações, é porque ela reconheceu um lugar legítimo pra protagonizar esse testemunho: o de desencontrar a si mesma transfigurada em uma forma bizarra. Mas talvez nós que estamos encarando o vídeo de uma maneira muito conservadora: não há nada de macabro em potencializar a multiplicação de si (seja simbolicamente ou, como no clipe, corporalmente). Afinal, é culpa dos olhares acostumados ao simplismo mercadológico a impossibilidade de acolher a imagem que surge como pura-aparição. Nos pedaços sonoros, o vazio é avaliado como uma propagação-máxima em quem habita o mundo. Este, em sua forma mais simples, não consegue apreender as coisas com nomeações, mas somente ir de encontro ao que lhe é estranho, atraído pela proximidade-possível. Essa música que potencializa o estranhamento permitindo novas locomoções no que parecia ser um ambiente saturado pela superfície de fórmulas arcaicas.

Esse tipo de música diz a partir de lugares silenciosos e, teoricamente, mortos, onde o distanciamento primordial do mundo-construído lhe permite celebrar a vida de um jeito menos caricato. A avaliação de quem está nesse lugar rejeita os constructos como ego ou subjetividade, propiciando uma nova relação com a composição musical e a coreografia, por exemplo. Isso é uma música que relocaliza sua função. Ela ignora os lugares inflacionados e migra pros pontos-mortos, porque neles as possibilidades são menos capitalizadas. A música eletrônica é capaz de rearranjar as expectativas de mercado com seus próprios instrumentos mais utilizados e evidenciar que há um terreno incompleto cuja obscuridade possibilita novas formas (transformar o espaço sufocado em redimensionamentos a partir dos sons. A “modificação” como maneira de dizer algo obscuro. As músicas abrem em sussurros que vão se transformar não pela alteração de volume, mas como uma evocação de sonoridades abstratas justapondo-se ao silêncio originário).

Alexandra então assiste a si mesma se desdobrar em multiformas enquanto não estranha esse fenômeno, mas o acolhe. Nesse ponto, a isolação atrai o que o mundo repele como um imã de resquícios e esboços. Mas, como alguém que transpõe o vazio enquanto habitat criativo, os retalhos de Alexandra se comprimem e evidenciam um desconforto no processo construtivo. Ao redor de dois minutos de “Switch”, as vozes de fundo circulam repetitivamente enquanto a principal é sugada por essa espiral, claramente atraída pelo conjunto meio-fúnebre que o coletivo desenha.

A música, de repente, mostra-se como construção efêmera capaz de transitar nos polos mais diferentes deste mundo. Por se prolongar através dos gestos variados que Alexandra pode acessar todas suas possibilidades sem a mediação de algo como conceito ou desejo. Esse novo significado (a combinação de vultos imperfeitos) pode ser acessado pela radicalização dos processos produtivos, que causam um desencontro entre o que é pré-estabelecido e o que é capaz de erradicar o corpo em sensações urgentes. Eartheater e outros produtores contemporâneos capacitam audições pra além de sonoridades competentes e plásticas, utilizando elementos de sua fabricação em uma radicalização que propicia uma abertura cujo espaço é o ponto em que o ser pode justamente surgir sem limitações (no desmantelamento brota um novo corpo, novas vozes. Alexandra Drewchin desenha nos não-lugares uma saudação à alteridade possível. Tais não-lugares, ao invés de ressoarem como carga negativa, possibilitam uma nova forma de se relacionar com o espaço onde se encontra. Essas locações são ressignificadas pelo corpo que as percorre, em que criação é sinônimo de transformação. Elas podem ser encontradas em qualquer espaço renegado do mundo aparente, bastando uma relação criativa pra caracterizá-las como habitat receptivo. Como inalar ar puro depois de um tempo, essa habitação possibilita relações mais íntimas com o espaço em que se está. Eles são tão pueris e efêmeros quanto a casa em que se habita, pois todo lugar rígido resguarda um enigma constitutivo. Arte e comércio divergem quando aquela encara o cemitério como um lugar do nascimento-possível enquanto a comodificação visa o lucro em cima dos corpos mortos).

Um consumidor jamais perceberia a possibilidade infinita abrigando um cemitério. Não é coincidência a sonoridade do disco soar frígida e congelada em primeira instância. A música eletrônica pode aliar-se a esse espaço pra desvelar suas estruturas. A massa dessa produção é remodelada pelos ouvintes quando estes percebem que se trata de descobrir algo enquanto se é descoberto. Como declarei antes, os resquícios constitutivos podem ser apreendidos em seus movimentos. Mas jamais aprisionados, pois estão sempre a caminho de renegar o espaço primário pra transformarem-se.

01. Peripheral
02. Inclined
03. Not Worried
04. Inkling
05. MTTM
06. Inhale Baby (ft. Odwalla1221)
07. Curtains
08. Slyly Child
09. Switch
10. Trespasses
11. MMXXX (ft. Moor Mother)
12. C.L.I.T.
13. In Vitro

NOTA: 8,0
Lançamento: 8 de junho de 2018
Duração: 39 minutos e 15 segundos
Selo: PAN
Produção: Alexandra Drewchin

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