Em fragmentos:
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No cenário político, um golpe de estado amparado pelo aparato midiático e pelo ódio acumulado por certo tipo de classe, reduzida infantilmente a certo tipo de partido, reverteu o jogo político e nossos representantes (e anulou, institucionalmente, a Cultura). Por que é lindo estar vivo aqui, mesmo?
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O condicionamento do nosso passado é a presença constante deste em nossa vida atual. Pode-se dizer, em algum nível, que isso é uma recusa de viver o presente. O El Toro Fuerte não acredita em nada nisso. Isso porque os meninos tratam o tempo como algo não cronológico – o tempo, aqui, é representado mais como uma soma de lembranças que irrompem no eu lírico e que todos seus desdobramentos são passados na crueza do vocal que trata sobre tantos momentos sempre com o ponto de vista do afeto.
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Então a gente lembra que não precisa agradar ninguém. Mas a gente começa a se perguntar quando nossas relações ficaram desgastadas, quando o olhar de nossos pais se transformou em um símbolo de derrota.
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Eu penso que todo o transe de “Um Tempo Lindo Pra Estar Vivo”, ao decorrer em temas explicitamente íntimos, transcorra nessa ambientação não de uma meditação propriamente dita – esses meninos estão muito distantes de qualquer racionalização formal na sua música. Embora o clima decididamente mais calmo possa parecer isso, logo na primeira ouvida percebemos que é algo que nasceu de muita dor, também. A explosão final de “Mudança” me relaciona ao Mineral do “Endserenading” – os cantos escondidos por umas guitarras extremamente cruas. Mas me relaciona, mais ainda, por ser um espaço (o final da canção) em que cada instrumento, em sua crueza, vibre com os temas de desgaste e rompimento que a letra simboliza.
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Encontrar-se na natureza – mais precisamente o mar – é impossível. A perdição está na dificuldade imensa da aceitação de quem somos. Não numa esfera boba de autoajuda. “João E O Mar” é construída – e é uma das melhores letras na música nacional em anos – sobre a dificuldade de aceitar o que nos tornamos. A distorção instrumental, que realmente pode incomodar algumas pessoas, é como as rachaduras que traumatizam uma pessoa – em ansiedade, em timidez, em depressão. A música constrói um clímax que ao mesmo tempo perturba, ao mesmo tempo é sujo, lento, arranhado. Em um segundo momento, a dificuldade de aceitação vai sendo mais bem trabalhada. É importante notar que os meninos do El Toro Fuerte não negam em nenhum instante da dor e não deixam de questionar se qualquer momento pretenso de calmaria não pode ser uma espécie de mentira ou ilusão.
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Na sexta faixa (“Quando Seus Pais”), é afirmado “E é isso afinal, que o mundo exige de nós / pra que sejamos considerados / a nossa habilidade de esquecer / nossas próprias dores”. Não esquecer suas dores é fundamental pra entender o que de mais profundo “Um Tempo Lindo Pra Estar Vivo” tem a capacidade de mostrar. Suas transições instrumentais nunca se esquecem dos elementos de outras sessões – é como se todo o avanço nunca relegasse suas pegadas, por mais sujas que estas fossem.
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A noção de dor é um pressuposto básico pra todos os momentos do disco. E isso não é afirmado num ceticismo infantil. É trazido a nós em recortes poéticos (e muitas vezes diretos) que lançam o ouvinte no meio do tornado. Experiências nunca são fechadas, sempre permanecem abertas às revisitações e possíveis modificações. El Toro Fuerte realiza um apelo pra lembrar-se da dor e esse processo dignifica as novas vivências
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“Flagelo” é, talvez, a faixa mais direta sobre a dor. Aqui, ela é trazida como elemento-chave pra captar a humanidade de outrem. Ela é um elemento de reconhecimento entre diferentes personalidades.
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Nós olhamos pra trás e percebemos nossos erros. Com alguma sorte, consertamos alguns deles, outros, continuamos a cometer. Talvez até pior. Não há redenção fácil em “Um Tempo Lindo Pra Estar Vivo”. E nem poderia. As palavras, que em certo momento o eu lírico afirma “vazias”, instabilizam o ouvinte – assim como a progressão inesperada instrumental, contando com variações diferentes e transições inesperadas. Ao mesmo tempo em que é um disco que instiga e desestabiliza o ouvinte, o álbum, paralelamente, deixa bem claro que estar instável é cada vez mais recorrente e comum com o avanço da vida.
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Crescer não nos torna menos vulneráveis. Ao menos não deveria.
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O baque desse disco em mim foi grande. Eu gosto, agora, de caminhar sob o sol. Eu senti alguma camaradagem com esses meninos. Há algo acontecendo aqui. Assim como a dor que está em cada melodia de Juçara Marçal, ou nos temas sensibilíssimos do ruído/mm e do EATNMPTD e em tantas manifestações recentes da música brasileira – são elementos que, aparentemente tão distantes (o noise carioca e o emo mineiro, por exemplo), carregam um item fundamental de humanidade (ou busca incansável dela) pra derrubar fronteiras estéticas: a dor. Dessa constatação, podendo ouvir tanta música boa e na minha língua, é possível afirmar que é realmente um tempo lindo pra estar vivo. Apesar de tudo.
NOTA: 8,0
Lançamento: 16 de maio de 2016
Duração: 40 minutos e 38 segundos
Selo: Bichano Records
Produção: El Toro Fuerte
Pra quem viu esse álbum ser construído, posso dizer que o resultado superou todas as expectativas. A cena “rock triste” de BH está crescendo e que bom que a gente tá vivo nesse tempo lindo pra ver acontecer.