“E deus usou a beleza dele”, Faixa I
Apesar de ouvir umas histórias sobre Jesus e Maria lá pros dez minutos de “Não tinha Como Deus falar Com Cleidinir” (o que é a voz de Deus se não a incipiência do fim?), o enigmático disco de três projetos lançado pela Seminal surge como uma prece maldita de dias equívocos (não foi toda a pandemia assim?) em que a destreza do discurso cede aos sons irrevogáveis da recusa da beleza (“e Deus usou a beleza dele”). A falta de historicização lança no discurso – e no som – um deslocamento que talvez remeta aos fragmentos impossíveis do hoje. A primeira faixa materializa em um groove desgastado (a ideia de desgaste é flagrante em todo o disco; “só sentia vontade de morrer, eu chorava dia e noite”) a vontade de um negativo, de reverter todo o quadro que se apresenta – depois ela acelera, entra numa pulsão meio techno com ondas que surgem com música popular brasileira (Roberto Carlos, por exemplo).
A própria ideia de estrutura parece não existir, embora a função narrativa (existir Deus, existir Cleidinir, existir a voz imperiosa que se repete como autoconsciência, existir Roberto Carlos) seja suportada pela ideia (ou desejo) de correlação. Se todo ser humano precisa criar uma linearidade no caos da vida, a reunião de constelações dispostas no disco sedimenta a possibilidade de construção. Feliz FM não está representando através de mapas seu próprio ambiente que não pertence à religião, eles estão enviando gestos do próprio processo disruptivo (dissociar é também narrar). A conversa dinâmica de “A juventude Do Rio de Janeiro Respira Por Aparelhos Ruidosos” aparentemente se situa na recusa de um formato pré-estabelecido de discurso, de ruídos que rasgam o homogêneo e de uma constelação de vozes discordantes (mas ligadas afetivamente).
Eu recebo as vozes e a estrutura como alguém capaz de prosseguir a narrativa. A proposta, pelo que eu entendo, é exorcizar as vozes não como um processo santificado, mas para revelar demônios que coabitam nossos espaços invisíveis. Quando eu ouço a fricção da guitarra inaugural em “Expostos Ao Som Dos Galpões”, estou exposto a um desaceleramento – a própria medida de tempo que se altera, ou se anula, entre as três músicas configura uma ornamentação do espaço (ainda que retirar elementos seja ornamentar algum lugar) que se reconfigura algumas vezes (são, no mínimo, quatro pontos de vistas, contando que Feliz FM seja uma dupla, ou talvez apenas três pontos de vista mesmo, porque Caron, no Bandcamp, é afirmado como outro).
Essas correlações nascem porque a escuta do disco é um contato com detritos, sedimentos, enfim, “sons” dos “galpões”. Qualquer analogia de galpão com subconsciente soaria batida e desgastada, mas você já teve a impressão de ouvir sons do limbo que se cristalizam em melodias de extermínio? Então, eu já. O que é marcante na diversidade sônica de “A juventude Do Rio de Janeiro Respira Por Aparelhos Ruidosos” é que o processo de significação não é limitado pela consciência. Por isso que eu falei de “impressão de ouvir sons do limbo”, porque a própria chegada da música é um movimento tanto afirmativo – criar – como negativo – recusar a ideia tradicional de melodia – que se condensa como uma história de vestígios. A combinação de diferentes sonoridades não é objetivamente uma ligação entre relatos lineares, provavelmente não o são, mas uma disrupção que, ao negativar a ideia tradicional de linearidade, reivindica o processo humano de, desajeitadamente, construir significados. Da parte dos artistas, ao dar determinada ordem a essas diversas ondas como fonemas que não têm fundamento lógico em estados de choque, em aparições sensíveis, eles reconstroem os pedaços como um painel deformado que dispõem sobre imagens quebradas, que remetem à perda de alguma característica originária.
Essa troca entre artistas e ouvintes é uma devoção. E relações de devoção são poderosas, porque transformam (ainda que seja destruindo). “A juventude Do Rio de Janeiro Respira Por Aparelhos Ruidosos” situa-se além de seus sons porque cada vez que eu escuto eu me sinto modificado pela paisagem alheia, como se o Outro (como Caron é denominado) regulasse a minha relação com o mundo e projetasse uma vida caótica em que eu posso existir (mais ou menos como um espelho estilhaçado que, ainda assim, prova que você tem um corpo). E ter um corpo significa estar desintegrando-se no mundo e a melodia da desintegração é absurdamente desagradável e bonita.
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1. Feliz FM – Não Tinha Como Deus Falar Com Cleidinir
2. Nome Morto – Expostos Ao Som Dos Galpões
3. J.-P. Caron – Esta Máquina É Borracha E Metal, Ela Se Ajusta Ao Seu Corpo E Você Morre Lentamente
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NOTA: 9,0
Lançamento: 3 de agosto de 2021
Duração: 69 minutos e 04 segundos
Selo: Seminal Records
Produção: Matheus Ullmann e artistas