As batidas convidativas e não forçadas de “Eletrocardiograma” tornam fácil a audição do disco de Flora Matos. Mas, como toda rapper deveria fazer, é através da narrativa detalhada/pop que o álbum encontra sua maior força.
Flora é uma boa construtora de cenários e conhece com a palma de sua mão os temas sobre os quais decorre. Há uma lógica interna da artista que permite ao ouvinte mais atento identificar além das repetições grudentas e do instrumental “cloudy” um senso de deslocamento e avidez por paixão que situa a busca da brasiliense. É uma abordagem de quem sente o tempo escorrer e, paradoxalmente, tem-no como única medida pra relatar suas vivências. O tempo entrega essa dubiedade e é justamente daí que Flora discorre: ela é feita de coisas que não lhe convém, resta aceitá-las e moldar-se, mesmo em relação às coisas que fogem a seu controle (tempo, outros e sistema). “Eletrocardiograma” tem a postura artística de quem molda o possível na realidade e aceita as coisas maiores.
E talvez pelo reconhecimento de uma enormidade que lhe foge o controle que Flora dê espaço pra divagações instrumentais e participações de outrem no disco. É o jeito que ela vive: pagar a própria conta no bar, as pistas de danças e novamente – a afirmação de si mesma no tempo. Brilhar, cantar e ter as pessoas que gosta por perto. Até o fim, essa é a maneira de Matos se introduzir na narrativa temporal.
Suas ligações se estabelecem, no disco, sempre a partir do tempo presente e é na emergência do “hoje” que ouvimos uma compositora mais empenhada em descrever sua dimensão interna do que causar qualquer tipo de polêmica (o que é uma realidade em nossa música contemporânea: atirar nomes por aí pra captar a atenção alheia. Flora faz o inverso: evidencia o quanto seu universo perceptivo é rico e complexo). Os ambientes externos, pistas de danças, avenidas etc., sempre aparecem como possibilidade de deslocamento. Há, a todo momento, um local pra ir. Seu passado e presente parecem residir no mesmo local, num corpo que exige afirmação e brilho próprio.
Em “Deixa Brilhar”, é constantemente narrada uma luz que a narradora pede pela não intervenção em seu funcionamento. As batidas suaves e espaçadas completam as letras poéticas, pois miram em uma completude cuja impossibilidade é conhecida por Flora. Elas são lentas e nunca chegam a um clímax (nem tentam, na verdade) e, no término de cada canção, sempre deixam à solta pro que está por vir. Um exemplo disso é “1O:45”, que narra uma história romântica ambígua cujo andamento (e não desfecho) é o ponto em que a letra se foca. As batidas morrem lentamente, atrasando suas repetições até cessarem – sem qualquer tipo de explosão.
No topo de sua ressurreição de afetos, está (claro) ela mesma. A sonância, tanto instrumental quanto lírica, parte duma pessoa com plena noção do que pode realizar na vida. Dessa forma, ela decreta seu entendimento com autonomia verossímil. A recorrência do assunto, no entanto, não extingue as diferentes abordagens que o mesmo tema pode ter. Ainda assim, “Eletrocardiograma” é um dos poucos trabalhos que ouvi este ano que justifica o (vago) conceito de álbum: debruçar-se sobre um tema até exprimi-lo ao extremo.
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01. Perdendo O Juízo
02. Me Ame Em Miami
03. Parando As Horas
04. Quando Você Vem (com. Robert (Ahrel) Lumzy)
05. O Jeito
06. Bora Dançar
07. Deixa Brilhar
08. Não Vou Mentir
09. 1O:45
10. Sonhos Gangsta
11. Com Faz (Acústico)
12. Preta De Quebrada
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NOTA: 7,0
Lançamento: 7 de setembro de 2017
Duração: 38 minutos e 24 segundos
Selo: Independente
Produção: Iuri Riobranco