A estrutura eletrônica instalada em “Sharpest Knife” consome o ouvinte ao criar paradoxos que se adaptam estranhamente na vertigem.
O que é contado como procedimento variado – a guitarra na primeira música (embora eu não esteja inteiramente convencido de que se trata de uma guitarra) ou a ambientação meio deep house na quarta faixa, “Kill Box” – advoga pela impossibilidade do Uno. Ainda assim, como dito, é formidável como o “clima” do disco resiste, apesar de operações superficialmente divergentes.
É, portanto, no efeito “estranho” que, totalitariamente falando, “Sharpest Knife” possa ser executado como um disco, como uma peça Una. Ainda assim as situações nas faixas sempre crescem exponencialmente e por isso determinam que o acúmulo de procedimentos é na verdade o método original de composição. O que é muito difícil e a execução de Paim (G. Paim é o músico Gustavo Paim, de Curitiba) neste sentido é formidável (por exemplo, a forma com que as vozes entrecortadas soam ora no fone esquerdo ora no fone direito, às vezes nos dois, no início de “Quase Réptil”).
Não há outra maneira de ouvir o disco: eu tentei, a título de experimento, ouvir sem fones de ouvido e a diferença é gritante. Obviamente, é em função dos detalhes, mas há uma categoria obscura que a audição só consegue estruturar sua experiência através da utilização dos fones. A multiplicidade é estruturada de forma que as batidas conduzam no campo primário e os efeitos nos outros planos ressoem, antagonicamente, como se eles fossem o guia das batidas mais simples.
É um troço esquisito: ao mesmo tempo que eu tenho a plena convicção de que as batidas deixam a audição prazerosa pra mim, eu tenho a certeza de que o que deixa tudo muito empolgante são as movimentações mais ruidosas e abstratas. É como se o ponto central do disco não pudesse se evidenciar, mas apenas operar. Como tal, ele existe organicamente (um termo que é bem mal utilizado, mas pode explicar o espelhamento multifacetado de “arquivismo”, por exemplo), entretanto há sempre a impressão de que há algo mais profundo.
A multiplicidade é evidentemente atravessada por raras certezas que tomam conta em certas partes do disco. Ainda assim, esta suposta multiplicidade (que tantas vezes toma conta da audição) pode ser ouvida como uma operação contínua – daí a impressão de que há um regimento não evidenciado que suporta qualquer hipótese de “conceito” no disco. Há a multiplicidade de sons, evidentemente, e eu não quero dizer que o disco “seja” sobre algo ou qualquer coisa. Eu quero dizer que fiquei bem impressionando como a imersão no disco. Mesmos nas faixas mais rasgadas, como “Sharp Knife”, deixaram em mim uma referência que eu sempre – em algum nível de consciência – esperei encontrar quando voltei a ouvi-lo.
Vamos concordar que estes termos não significam muita coisa, ainda assim há uma honestidade neles não apenas na dificuldade semântica como na representação por escrito dum disco tão impressivo.
Uma situação carrega suas dubiedades, mas “Sharpest Knife” é um evento que traz consigo inúmeras coisas (retaliações, batidas, delays) cujo maior valor não é uma suposta “consistência” ou “inconsistência” e sim de como erradicar limites entre estes polos e ainda assim apontar um sentido. Esta falta de dualidade somente é possível através da soma de procedimentos ora reforçados ora abandonados no meio do caminho. Porque não é uma produção fechada em si, mas com a plena sonoridade de algo que existe por força própria – por resgatar alguns fantasmas e por deixar de lado certezas.
Estrutura, ao contrário do que muitos afirmam, não é questão de consistir: é formada por um sem-número de multiplicidades que divergem em suas próprias origens (sons cortados, drone, retalhos contínuos). É claramente reconhecível que as obstruções aos andamentos mais comuns no disco não é pra dificultar e sim pra não simplificar a ponto das divergências terem limites sonoros estabelecidos. Esta semilimitação cria as condições pra dissolução do que pode ser chamado de “consistente” em prol duma audição mais engajada. É a mesma coisa que dizer que toda a composição de “Sharpest Knife” suspende o ouvinte em sua movimentação imprevisível mas também o coloca em condições de tirar impressões muito definidas a partir de contornos semiabstratos (mais uma vez, não é ilimitado continuamente, nem limitado sonoramente).
P: O que faria um discurso com sentido apreensível pro ouvinte?
R: Não há nada que difere as situações além de suas impressões e ainda assim é evidente que não se trata tudo duma mesma coisa, mas advém dum mesmo âmbito (além de obviamente do mesmo artista). A música existe porque causa uma situação. Em “Sharpest Knife” nós nos encontramos imediatamente num acesso múltiplo simultâneo.
01. Intro
02. Servidor
03. Combustão
04. Kill Box
05. Dullest Knife
06. Quase Réptil
07. Dull Knife
08. Arquivismo
09. Sharp Knife
10. Em Vermelho
11. Sharpest Knife
12. Quase Humana
13. Viajante Do Tempo Em Seu Tempo De Partida
14. Procedimento
—
NOTA: 8,5
Lançamento: 6 de março de 2017
Duração: 47 minutos e 07 segundos
Selo: Subtropics Records
Produção: Gustavo Paim