RESENHA: GROUPER – GRID OF POINT

Em muitos caminhos convergiram nossos desastres, retomar o traço da continuidade parece impraticável quando toda herança é uma visão turva das coisas que passaram. A mistura de sensações como fracasso, de que eu deixei algo valioso escapar à medida que forças incompreensíveis tomaram o controle e eu fui cedendo ao tempo, ao cansaço de um corpo fatigado de trafegar. O espanto é que as coisas pareciam ordenadas, elas pareciam estar sob controle antes de fluir pro canto oculto do irrecuperável. Elas não podem mais ser descritas; tentar sentir seu tato tornaria a tristeza muito maior. Os transeuntes passam com rostos desfocados, recusando-se a encarar quem muito pouco pode contracenar visualmente. A abertura de “Thanksgiving Song” ilustra uma cidade desolada, onde ninguém realmente existe e o barulho do tráfego parece apenas outra anedota da inexistência. A coisa mais misericordiosa do mundo é testemunhar essa paz opressiva, em que vozes que deveriam acalmar o que se entende por espírito revelam uma inquietação que berra muita mais do que qualquer grito. Elas sopram o desencanto.

Nós vivemos carregando imagens de possíveis felicidades, uma felicidade sempre porvir e que nos libertará do peso opressor dos dias desastrosos: dirigir em uma estrada com o vento esvoaçando nossos cabelos, feriados festivos pra reencontrar as pessoas de que mais gostamos, aniversários; as canções têm nomes-identidades que desconcertam o ouvinte quando são associados pela voz de desencanto da cantora. As músicas são a ausência constante de sincronia com as imagens idealizadas. Os espíritos de desencaixe são evocados pela Grouper (Liz Harris) pra falar de corpos que assistem a suas vidas transcorrerem sem estarem verdadeiramente presentes em nada – sempre no momento do desalento e da ruptura (o desenraizamento da música como não-lugar, como ponto esparso tentando esboçar movimento num vasto campo indefinido. O volume sonoro é impalpável, tudo está escorregando, ao contrário da solidão mais carnal de “Ruins”, disco anterior, de 2014).

Como eu disse no começo, testemunhar o ponto em que os caminhos convergiram é misturar tudo de tal maneira que nada é definível. Um nevoeiro extenso conhecido como passado permite só a captura irreal de imagens borradas como os remanescentes das poesias de Michael Symmons Roberts. Mas, “às vezes, um colapso pode ser o começo de uma espécie de avanço”, como escreveu Cherríe L. Moraga, e é do ponto do colapso que o discurso do disco desaba em uma anulação de si no presente que se delineia (e a música tocando é a trilha de uma solidão primária: sem livros ou intermediação de quem ouve e percebe o mundo esquelético, sem propriedades e definições, apresentar-se a sua frente como imanência pura. Na primeira vez que ouvimos “Driving”, terceira faixa, a imagem de um mundo solitário é a constante que nos acompanha e nos persegue. O espaço em que a música se materializa é esparso e a abstração sonora deixa tudo ao redor indivisível).

Como o disco antecessor, distrair-se é impossível: não só a curta duração, como a hipnose dos cantos melancólicos da cantora em conjunto com o minimalista piano criam um epicentro que suga e exige a atenção completa. O gênero musical não tem contornos definidos e pode ser encarado com um retorno constante à simplicidade. O enraizamento sonoro como extensão nervosa de sua criadora permite que o disco seja completo em sua imposição indefinida.

O álbum revela uma Grouper homenageando uma intimidade que apenas pode ser compartilhada através do processo de distanciamento do mundo prático e aproximação de sua nulidade originária, retraindo-se até o ponto em que os eventuais sons essenciais coliguem o ouvinte ao universo sensorial nem sempre alinhado ao objetivo.

Onde alguma vez houve uma existência, agora é refratado no simbólico internalizado construído por quem testemunhou a própria história. De onde havia uma mesma paisagem, agora restam estilhaços impossibilitados de reformularem o painel completo, cada um representando microvisitas de momentos pra sempre perdidos. Onde havia afeto, agora apenas reside uma superfície que impossibilita um acesso completo à densidade originária. Onde havia significado, reside uma estranheza perturbadora. Lugares aos quais tudo se perde e se condensa.

1. The Races
2. Parking Lot
3. Driving
4. Thanksgiving Song
5. Birthday Song
6. Blouse
7. Breathing / Cold Train

NOTA: 9,0
Lançamento: 27 de abril de 2018
Duração: 21 minutos e 51 segundos
Selo: Kranky
Produção: Liz Harris

Leia mais:

Comentários

comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.