RESENHA: GRUTA – RITO

Qualquer coisa que surja do Gruta vai ser uma experiência incomum (uma martelada constante de alteração do volume, cortes bruscos e saturação). É como se tudo o que fosse tangível e palpável estivesse circulando livremente em frente a seu nariz mas nunca fosse capaz de ser apreendido. Pra falar a verdade, você que será tomado pelo processo de manipulação sonora em “Rito” (mas qual é o mito aqui?). A formação, apesar de densa e em primeira impressão decididamente estática, é a continuidade de algo que ainda não se apropriou de nada (é como se locomover num espaço confinado porém transitável). “Rito” (veja mais aqui) delimita paredes que não são simétricas ou planas mas decididamente estabelecem limites que às vezes parecem nos apertar e às vezes parecem vultos distantes.

A colaboração entre Cadu Tenório e Thiago Miazzo parece um enigmático paradoxo entre um transitório permanente e uma sensação claustrofóbica. É como se o significado estivesse sendo explorado e descaracterizado, mas os métodos dessa desconstrução obedecessem a determinada norma. O que dita o valor de “Rito” não é apenas sua qualidade experimental (as diversas distorções, os ruídos, a percussão sinistra, o desmantelamento de sonoridades) mas sim que é um ato de converter relações paradoxais e paralelas em um discurso intenso que se apropria de um espaço (invisivelmente) determinado pra oferecer tantas interações.

O pulso constante, as crepitações distantes e a retaliação instantânea (que surge no início de “II”, a segunda faixa) passam de ser um processo pra interagir e forçar o ouvinte em uma manipulação abrupta e densa. Utilizando diversas fontes sonoras, a dupla trata o som dentro de seu enclausuramento definido da única forma possível – parece realmente uma força que está presa por mitos e tenta se desvencilhar de um peso histórico pra poder ser algo com valor próprio. Por isso, é tão intrigante definir uma espécie de textura pra sonoridade passada aqui – qualquer definição deste tipo seria sempre fugidia porque a caracterização de “Rito” é uma fuga constante que ora se avoluma e ora se reduz. Há o processo de difundir e diluir e saturar o espaço; é o processo de exploração do ambiente fechado (fechamento histórico, técnico, psicológico, estético?). Timbres novos descaracterizam um evento anterior, a ambientação persiste – um novo evento é criado. Estas formas criadas pelo duo são soturnas e por isso muito difíceis de se caracterizarem; porém seus efeitos colaterais são sentidos a todo instante de “Rito”.

Eu me pergunto: o que guia o Gruta? Em “Rito”, o mito é passado, valorizado ou superado? Enfim, de questões tão teóricas eu só posso tirar um resultado “físico” e ele é o descarregamento sonoro contínuo ao qual somos submetidos em “Rito” (isso me faz pensar que o mito é a ideia de conceito, que Tenório e Miazzo ironizam os significados enquanto trabalham com mudanças tão constantes de sons e intervenções bruscas no ambiente). Em “Rito”, tem-se muito pouco processo de repetição; ele soa muito vasto, muito manipulador (especialmente na última faixa) e o próprio álbum estabelece os limites em que ele se debate. É um processo complicado em que a criação original (mito) ou a ambientação inicialmente estabelecida sempre será o receptor dos movimento mais radicais de “Rito” (e há neste vários).

O processo mais inclinadamente retaliado nas três primeiras peças é desobedecido na vastidão e imersão provocada pela última e longa faixa. No avançar da peça, essa espécie de desconexão abstrata sai da clandestinidade pra impor uma presença vasta e estranhamente silenciosa (é engraçado como a ideia de silêncio é reconsiderada quando se compara a última faixa com as três primeiras). Se as formas na primeira parte do álbum estavam (ainda que) obscuramente estabelecidas, nesta última música parece que temos uma lenta sobreposição de ecos. É fascinante.

O arsenal multissonoro do Gruta parece ser reduzido no avançar de “Rito”. O que sobra são espectros do que foi (des)construído. Estes fantasmas transitam livremente (não há mais a claustrofobia delimitada do início e sim um desconhecido absurdo). A última faixa, ao mesmo tempo em que é a mais explícita do projeto e talvez a mais livre, é a que menos lida com surpresas. Suas direções são cíclicas e essa provocação/atração que a dupla impõe é muito categórica (principalmente se analisadas em um todo na música brasileira. É realmente um trabalho autoral muito forte). A relativa previsibilidade dessa faixa e a imposição de sua imagética sinistra carregam o ouvinte numa espécie de ambiente soturno. É como se a saturação massiva anterior se transmutasse pra um domesticação cruelmente imposta.

O Gruta se concentrou em espectros sonoros ao invés de considerar interações apenas melódicas ou efêmeras. A aparente estagnação da faixa que encerra o disco e também seu aparente anticlimax constroem o que a dupla estabeleceu como a sua eternidade (claro, nos minutos que “Rito” dura). Porque todo o disco foi construído sobre a base de dissonâncias agressivas que o excesso de “não-acontecimentos” estabelece uma discordância em que transes tão fantasmagóricos são possíveis.

Se falta drama em “Rito” é porque seu processo de formulação nunca necessitou de tal qualidade. É mais algo palpado na “diversidade” da catarse ou nas variações sonoras que um mito possa exercer. Não há abstração alguma aqui: há um disposição de elementos muitas vezes discordantes pra ampliar (e interessantemente prender) as possibilidades sonoras. É um desaparecimento. É uma entrega que se caracteriza pelo excesso de ecos, sombras e fantasmas.

NOTA: 7,5
Lançamento: 19 de julho de 2016
Duração: 53 minutos e 20 segundos
Selo: Brava
Produção: Cadu Tenório

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