RESENHA: HORSE LORDS – THE COMMON TASK

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Na Rússia, com os escritos do “teólogo laico, ou filósofo religioso”, Nicholas Fedorov (1828-1903), surgiu a ideia da “Tarefa Comum” da humanidade, uma utopia radical.

Como descreve Hermínio Martins, sociólogo português, “tal como os marxistas russos, Fedorov advogou a ‘unidade da teoria e da prática’, o envolvimento de toda a atividade científica e técnica e a unidade da humanidade numa titânica mobilização tecnocientífica. Os fins dessa mobilização e ‘consciencialização’ planetária (‘o planeta torna-se consciente de si próprio’) não são simplesmente a abolição do sofrimento, da doença, da ignorância, da guerra, da opressão e da exploração, mas a restauração da vida – a ressurreição de todos os mortos. Pois, argumenta ele, pra que mudar a vida se não se pode mudar a morte? Esta ‘Tarefa Comum’ acabaria por implicar a humanização ou a espiritualização não apenas da terra, mas do cosmos”.

Fedorov queria usar a ciência pra entender e trazer à vida os mortos. Assim, estaria mais perto de deus, qual deus seja. Com isso, passou a ser tido como precursor de conceitos futuristas, como a cibernética, robótica e tals.

O nome do novo álbum dos estadunidenses (de Baltimore) Horse Lords, “The Common Task”, é provavelmente uma referência a Fedorov. A “tarefa comum” a todos de superar a morte é uma utopia tão radical quanto a significação da música insinuada pelo quarteto: experimentar com tudo, sendo que o tudo não é finito como se imagina. Há sempre algo a surgir, algo que sequer se vai perceber, pois pode surgir após a morte e a morte ainda não está alterada.

Nesse quarto disco, eles seguem as “normas”, pois se repetem, especificadas no trabalho anterior, o ótimo “Interventions”, de 2016 (ouça aqui).

Ali, segundo eles mesmos, “os ritmos da África Ocidental colidem com guitarras de entonação, saxofone, grooves minimalistas e zapdowns“. Um realce no que Faust e This Heat já fariam. Pode incluir também o Neu!

Quem não conhece, a banda tem Andrew Bernstein (sax e percussão), Max Eilbacher (baixo e eletrônicos), Owen Gardner (guitarra) e Sam Haberman (bateria). Alguém já disse que o grupo desenvolveu uma linha clara de investigação em torno de sistemas que organizam não apenas a produção musical, mas também a sociedade, a filosofia e a crença. Pode ser exagero, afinal “é só música”.

Ou pode não ser. O utópico campo de atuação do grupo nem é assim dos mais impossíveis de alcançar. A experimentação em áreas como do harsh noise são um tanto mais radicais e o Horse Lords pode agradar quem um dia imaginou bandas queridinhas como a Badbadnotgood fazendo músicas circulares e hipnóticas.

O quarteto mistura não só “ritmos da África Ocidental”, como se fosse algo do outro mundo, mas “densos tecidos de polirritmos e exploram sistemas de sintonia derivados matematicamente com instrumentos modificados e processamento eletrônico”.

Embora pareça abstrata, a música dos Horse Lords não precisa (provavelmente, nem deva) ser encarada dessa forma. Não é mais arte do que a música de uma diva pop. Nem menos. Mas tem uma mensagem que necessita ser captada, especialmente em tempos sombrios como os atuais.

O disco começa com “Fanfare For Effective Freedom”, cujo título deriva do livro de Anthony Stafford Beer, um ciberneticista britânico, que trabalhou pro governo socialista chileno de Salvador Allende, de 1971 até o golpe que Pinochet deu, em 1973 e implantou a ditadura no país. Beer estava Projeto Cybersyn, um esforço ambicioso do governo para que a informática gerenciasse a nova estrutura social e econômica do Chile. “A homenagem dos Horse Lords a Cybersyn é menos uma forma de encarnar e mais uma personificação dessa tecnologia aspiracional, sonhando com o esforço radical de capacitar uma sociedade mais comunitária”, escreveu o site Aquarium Drunkard, ao analisar o disco.

O ouvinte não corre o risco de desistir no meio do caminho. Não há teoria ou golpe pra destituí-lo da missão. A música do Horse Lords é tão envolvente e carismática que os mais de quarenta minutos da obra não são definitivamente percebidos. “Integral Accident”, com mais de dezoito minutos, fechando o processo, é um convite pra uma nova volta.

O ideal socialista e cibernético do grupo pode ser utópico em um mundo sem tanta compaixão, que vê a morte como mais um processo e um gatilho pra comercialização de almas. Mas sua forma de experimentar dá ao mundo sinais de que a música, ao menos, ainda pensa. E que nunca vai morrer.

1. Fanfare For Effective Freedom
2. Against Gravity
3. The Radiant City
4. People’s Park
5. Integral Accident

NOTA: 9,0
Lançamento: 13 de março de 2020
Duração: 41 minutos e 10 segundos
Selo: Northern Spy Records
Produção: Horse Lords

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