RESENHA: INTERZONA – DERRETIMENTO

Napoleon Hill foi um escritor estadunidense, autor de livros de auto-ajuda, especialmente “Pense E Enriqueça” e “Quem Pensa Enriquece”, que dedicou sua vida profissional a descobrir fórmulas de conseguir riqueza. Qual a fórmula pra criar milionários? Ele mergulhou nisso, ganhou notoriedade a ponto de ser conselheiro de Franklin Roosevelt, criou alguns passos pra todo mundo poder chegar lá e só não contou que não é assim uma ciência tão exata, afinal bastaria ler os livros e seguir à risca suas dicas e incentivos pra virar um Henry Ford.

Na prática, Hill é mais um exemplo bem acabado do capitalismo reducionista e predador, pregando o bem-estar como algo diretamente proporcional à quantidade de dinheiro que se possui no banco ou de bens em seu nome. A despeito da forma, o que importa é o objetivo: “fixe, em sua mente, a quantidade exata de dinheiro que deseja conseguir, seja preciso em relação à quantidade; determine, com exatidão, o que se propõe a dar em troca do dinheiro que deseja, não é possível obter algo a troco de nada; estabeleça a data concreta em que terá todo dinheiro que deseja; idealize um plano definido pra levar cabo o seu desejo e dê início imediatamente; coloque todas essas ideias no papel, a quantidade de dinheiro que deseja, o que dará em troca, a data exata e descreva, claramente, o plano idealizado; leia sua manifestação escrita, em voz alta, pelo menos duas vezes ao dia, uma imediatamente antes de deitar-se à noite e a outra, ao levantar-se pela manhã”.

Parece fácil, como tudo que o mundo dos sonhos e desejos vende. A ilusão, a utopia, o desejo, a expectativa são alguns dos motores do homem e muito disso reverte-se em frustração, em depressão, numa visão realista de que a riqueza prometida pelo capitalismo idealizado é finita e vai acabar nas mãos de poucos. Nem todos são persistentes e mal-caráteres como um Ray Kroc, nem todos são cruéis e geniais como Zuckerberg. Sobra todo o resto, 99% da população que vive pra gerar riqueza pra poucos bolsos, em troca de um trabalho muitas vezes hiperexplorado.

Entre expectativa e realização, temos milhões de histórias de pessoas que se viram incapazes diante do espelho, justamente porque a batalha é desigual: por ética (ou falta dela), por capacidade, inteligência, diferença de preparo e acesso a oportunidades, ninguém sai em igualdade de condições. A solução é abaixar a régua por onde se mede os desejos e pra muita gente é o suficiente – ora, nem todo mundo que ser Steve Jobs, às vezes a realização é só ter grana pras contas, sobrando um pouco pra aquele chopinho do final de semana.

O que nos ensinam e nos estimulam – concorrência e ganância e ambição desmedidas – é que amplia os impactos de supostos fracassos. O derretimento de uma vida em torno de um sucesso que nunca é relativizado, porque sucesso mesmo é ser melhor do que os outros, sem se dar conta de que o ideal poderia (deveria) ser aquilo que ache que é melhor pra si mesmo.

Regras são regras. E vivemos num mundo que você deve ser o melhor e fim de papo. Uma divisão entre vencedores e perdedores, sem nada no meio. Um presente apocalíptico, como o apresentado em “Derretimento”, disco conceitual do baiano Jean Souza (Suzana’s Bauten), assinando como Interzona. A voz analisa a importância de Hill, como Orson Welles anunciando a invasão extra-terrestre em “Guerra Dos Mundos”.

Ele avisa que é um “projeto ruidoso apresentando seu debut com três faixas de puro barulho grotesco e incômodo”, mas o vendido aqui não foi realizado: não há ruídos incômodos nem grotescos. Só a temática, bem relevante e igualmente grotesca e incômoda.

“Através de um estranho e poderoso princípio de química mental (ainda desconhecido) o impulso do desejo é envolvido por algo que não reconhece palavras como ‘impossível’ e não aceita o fracasso como realidade”: é assim que “Pense E Enriqueça” se encerra.

O Interzona suspeita que não haja sucesso possível ao se confrontar a realidade. O impulso do deseja se desfaz com o passar do tempo até se acomodar no que é possível. O sucesso é e deve ser remodelado pra se encaixar numa sensação de realização. Caso contrário, viveríamos numa imensa sociedade de zumbis absortos em pura frustração e decepção. Mas casos ilustres de felicidade estão ao nosso redor, talvez até conosco como protagonistas. A felicidade é um algo palpável, só não pode ser dimensionado pelos valores dos outros.

Assim, é possível enxergar um final feliz em “Derretimento”. Através de seus experimentos retrô-eletro-acústicos (bem acessíveis até), ele oferece o quadro como uma problemática passada. Estamos olhando um filme B em preto-e-branco sem relação com o presente, muito menos com o futuro. É como se tivéssemos consciência de que o capitalismo predatório pode ser reajustado pra atingir felicidades diferentes com conquistas diferentes. É um mundo bem mais interessante pra digerir.

1. Derretimento I
2. Derretimento II
3. Derretimento III

NOTA: 6,5
Lançamento: 26 de julho de 2018
Duração: 32 minutos e 01 segundos
Selo: Exhaust Valve Records
Produção: Jean Souza

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