“A folhagem da casa abandonada e, ao longe, o ruído das crianças. Já não me ocupo com as cidades tristes da memória. (Não houve). Eu sou a concha que recolhe esses ruídos. A vantagem de ter sido assassinado, a vantagem de ter ficado só – quando a voragem do sonho aos outros levou numa viagem (ainda incompreendida) – é a de que a vida, esse avesso, percorre meu ‘interior’ sem nenhuma resistência. Não há impedimento, pois, se algo fui – além do puro alheio que congreguei em indistinções de fim e de início -, então fui uma água escorrendo noutro tempo”.
(Juliano Garcia Pessanha, “Ignorância Do Sempre”).
Em algum lugar no tempo cronológico, conheci os livros de Juliano Garcia Pessanha. Foi a saudação do fora, o reconhecimento da desmedida. Longe da luz famigerada que evacuava do mundo do saber-escola ou ser-bem-comportado. Falo disso, pois, se no último trabalho que ouvi de Caron, “ST” (2014), eu consegui perceber essa presença do fora, esse “Breviário” que me transportou pro mesmo lugar que a obra de Juliano (e aí eu poderia falar dessa minha “catalogação do fora”, de artistas que em minha percepção abordam os mesmos temas, perpassam a mesma ferida, e é nesse rol que eu separo o pouco trabalho que conheço do Caron).
Se no primeiro poema (é essencial baixar o disco e ouvi-lo acompanhado do arquivo em pdf; essa é a única maneira possível, aliás) é abordada a “recomposição”, eu a compreendo que essa restauração só existe em função do “momento poético”. É apenas nessa iminência (o momento que o universo para de ser representado para ser tocado) que existe a possibilidade de reorganização. Por isso, não há uma base objetiva. Caron não trabalha com operações tão limitantes. O experimentalismo de seus ruídos reside numa proposta radical muito singular. Prova disso é a massa sonora da última faixa, ela não só rompe o fluxo dos andamentos anteriores, como demarca um território inaugural, virgem. Ela é, ainda que a audição provavelmente mais “perturbadora”, a faixa que permite um gesto hospitaleiro. A humanidade no trabalho de Caron é a desmedida.
Parece que a liberdade que muitas vezes destoa tanta perturbação, é a mesma que pode nos transportar para algo menos “concreto” e, portanto, mais livre e indisciplinado. E é nessa liberdade que as pedras se chocando tornam-se um som tão denso e necessário quanto um piano. Caron explora esses instrumentos não como apenas potências técnicas, mas elementos que de fato transgridem o estabelecido. O tempo prolongado das notas, os espaços preenchidos e o que ainda está desocupado são momentos breves, que acabam rapidamente pra dar voz às outras bases manipuladas por Caron nessa perambulação.
Apesar de todo esse deslumbramento que a obra me causa, não se deve negar: existe uma violência gritante residida. Uma inquietação reinante (uma espécie de carroceria desenfreada com barulho de teclas de máquinas de escrever de alguém que está muito, muito aflito).
Há muito pra se falar aqui, mas todo o “processo” é bastante debruçado no arquivo que acompanha a audição. São obras interdependentes, que alavancam o ouvinte pra um território desconhecido, que movem a música pra terrenos tão interessantes. Tudo em “Breviário” se desencadeia em movimentos constantes que absorvem o ouvinte em espaços novos, em que a saudação da chegada se mistura com o aceno de adeus. É uma movimentação só. É a enunciação do impronunciável, justamente a soma de passos em um corredor de uma casa deserta, com a aflição do poeta que bate desesperadamente em sua máquina de escrever pra exaurir algo realmente verdadeiro em suas palavras, com dias que tudo está um saco e só resta amaldiçoar tudo. É isso que “Breviário” me representa.
Há algo invisível que está por trás de todas essas situações e que, de alguma forma, Caron musicou. É o mesmo instrumento e as mesmas notas. No entanto, ao passo em que tudo se repete nos ouvidos, uma substancia poética explode.
NOTA: 9,5
Lançamento: 13 de novembro de 2015
Duração: 45 minutos e 39 segundos
Selo: Estranhas Ocupações
Produção: J.-P. Caron