O sol tá forte num dia em que o vento reduz absurdamente a sensação térmica. Você tá meio grogue. Quando deixou de ficar escuro? Quando a rua tem tanta gente estranha? Os bares sempre foram tão barulhentos assim? Qual é essa música tocando no rádio? Acho que é Almir Sater. Hora de jantar. Nunca anoitece nesta cidade. O cheiro vindo da casa dos vizinhos é bom, eu vou só fazer miojo mesmo. Depois, banho. O vento revigorante, lembrando que o sol não tem tanta força, pelo menos neste cantinho de Minas Gerais. Você vai ficar bem. Todos vamos.
Nenhum sinal de chuva. O sol colide com o monte que faz plano de fundo à casa. Lavras nada tem a ver com os lugares de “Besta Fera”. Mas são idênticos: o fervor, o suor das pessoas de pé em frente aos bares. E assim por diante. As conversas soam como em uníssono, de modo que o vozerio mineiro se transforma em seu próprio silêncio. É como se a balbúrdia da cidade honrasse seu marasmo e reivindicasse o silêncio pra outra frequência semiurbana. Bom barulho: recorte de vidas alheias que criam o contexto e, portanto, são criadoras da experiência da cidade. Vozes de outras pessoas, pássaros e instrumentos convergindo em impessoalidade pura; parte da paisagem sonora destas ruas. Uma presença de outros, entre discos, espinhos, animais, desconhecidos, montanhas, obstáculos e pedreiras. Você pode sentir isso, não é? Tudo bem.
Espaços mantêm a energia mesmo que se passe por eles nas horas menos movimentadas, não importa se sua tia-avó diz que a cidade está morta em determinados horários. Nós habitamos as ruínas ainda vivas de uma continuidade espectral, absorvemos por osmose a imposição de um “tempo que não existe”. Afinal “essa é a graça”. Há algo ressoando espiritualmente entre essas ruas mal asfaltadas, entre o silêncio noturno condizente – de maneira inversa – ao barulho da tarde, entre o momento de descanso que não consegue interromper essa continuidade? Você só quer ouvir um samba, tomar uma gelada e relaxar? Tudo bem.
“Besta Fera”, de Jards Macalé, vive dentro de nossos domínios corpóreos numa realidade que se desvela, se altera, mas está sempre ali, à espreita. Livre de qualquer regulação, é um disco à beira de uma anunciação, à beira da despedida. É claro que precisa de existir um consentimento, uma permissão pra que ele te leve a lugares tão escondidos em tua própria terra natal. A vida mundana ganha uma nova abordagem quando expressa através de seus esconderijos, através de um processo contemplativo ativo que investiga os lugares-comuns como potências criativas. A benção simples de sentir uma admiração pela repulsa inicial dos caminhos tortos e dos olhos de sangue que se insinuam por essas ruas. Essa música domina os cantos irrestritos pra que eles vivam através de você.
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01. Vampiro De Copacabana
02. Besta Fera
03. Trevas
04. Buraco Da Consolação
05. Pacto De Sangue
06. Obstáculos
07. Meu Amor Meu E Cansaço
08. Tempo E Contratempo
09. Peixe
10. Longo Caminho Do Sol
11. Limite
12. Valor
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NOTA: 8,0
Lançamento: 8 de fevereiro de 2019
Duração: 44 minutos e 26 segundos
Selo: Zilles Produções e Natura Musical
Produção: Kiko Dinucci e Thomas Harres