Um monte de símbolos quebrados numa cidade em que os barulhos criam uma imagem, embora a existência concreta do que a imagem simboliza seja incerta. Começando com o título: pode-se imaginar uma cabeça transitando por uma cidade e apreendendo apenas esboços de sons e histórias, imagens e pessoas, animais e automóveis. Apesar de ser enraizado no livre-improviso, “Cabeça De Cidade” passa a impressão de uma contínua adaptação aos (des)ajustes da cidade. Invoca uma ausência de continuidade, um fluxo em que a buzina dum ônibus termina como uma sirene policial, em que uma nota do vibrafone termina com uma sobreposição de distorções de guitarras. O grupo sonoriza um constante movimento de retração na própria organização formal pra ecoar, com mais fidelidade, as bizarrices urbanas da forma que elas merecem.
“Cabeça De Cidade” é provocado pela invocação de sons no próprio instante em que eles estão transformando-se em outro som. Muitos timbres familiares passam a ecoar de outro modo, fazendo do disco um processo de familiarização com a contínua transformação de que se é refém. Mas não é uma fácil digestão, há de se estar preparado pra uma dança que pode até sinalizar alguma coreografia, mas que esta é abruptamente encerrada antes mesmo da segunda nota. A obsessão de “Cabeça De Cidade” é transitar pelo mesmo terreno das mais variadas formas possíveis, traçando um ciclo com diferentes contornos, conjurando uma cidade verdadeira justamente porque tem todos os sons misturados e cruzados, formando uma espécie de sinfonia inversa do movimento urbano.
Abrindo com uma espécie de introdução que já perde o caráter introdutório nos primeiros segundos, se é arremessado pra uma indeterminação que vai prosseguir durante todo o disco. “Mecânico”, terceira faixa, gira em torno de uma batida lunática em que vibrafone e as distorções surgem como catálise de um trânsito paranoico. Acaba com uma extensão que aceleradamente se apressa pra um fim brusco. O grupo parece perder o rastro de qualquer familiaridade pra desembocar numa usurpação do espectro familiar a fim de criar uma tensão pulsante.
Mas uma vez chegado a esse momento de vibração, o grupo reluta em deixá-lo terminar. Há de se manter a aceleração e ver em que isso tem um fim, se é que exista um término. “Botânico” bate da mesma maneira exagerada, em que a paranoia do começo do disco ganha tons de inconformidade, como se sua extensão fosse necessária pra finalizar algo que não se sabe exatamente. Já que se está arremessado nesse mundo de sons imprecisos, é necessário levá-los até o fim, explorá-los e aproveitar suas variações pra continuar instaurando diversas formas de perceber a realidade.
“Monocelular” lança uma luz difusa, em que a aceleração ainda está presente, mas se nega em tomar conta do processo. É como se houvesse passado o momento-auge e restasse apenas o amontoado de lixo pra recolher. Mas é a velocidade que trouxe aqui, e a perda do movimento acelerado deixa no limbo quem se acostumou a isso durante a audição. A intensidade acelerada de “Cabeça De Cidade” é que configura a dinâmica de sua apropriação em seus próprios termos, arremessando o ouvinte pra uma espécie de ausência antes mesmo de o disco terminar.
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01. Lunático
02. Elástico
03. Mecânico
04. Cabeça De Cidade
05. Êxodo
06. Perpétuo
07. Mergulho
08. Botânico
09. Monocelular
10. Aquático
11. (…)
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NOTA: 7,0
Lançamento: 1º de fevereiro de 2019
Duração: 19 minutos e 29 segundos
Selo: Independente
Produção: Julien Desprez, Thiago Nassif, Bernardo Pacheco e Victor Vieira-Branco