Apesar de não ser necessária em todas as instâncias, a arte requer uma transposição de algo que pelo menos tente reverter a estrutura na qual é, canonicamente, estabelecido. As justaposições dadaístas, por exemplo, mais do que subverterem a diferenciação entre “alta arte” e “baixa”, podem criar uma linguagem nova, caminhos frescos que normalizem outros modos de produção. A música molda esses caminhos até que eles fiquem completamente pavimentados e então possam, de fato, mergulhar no absurdo do cotidiano.
“Só Quem Viu O Relâmpago À Sua Direita Sabe” consiste em uma desmistificação do ser humano enquanto entidade-mor, como se toda a estruturação do conceito de humanidade devesse ser superada pelas criaturas naturais, objetos da essência de uma Terra caótica.
As quatro faixas erradicam meios artificiais, ainda que os utilizando, pra reverberar paisagens descontroladas, insetos, florestas. O absurdo completo pode ser mediado novamente, passando a ser objeto de interpretação e celebração musicais.
Há também um interessante coração artístico; devolve as faculdades naturais às interpretações das falhas como originárias de andanças novas. Há muitas referências evidentes como Agalloch ou Panopticon, mas a incrementação dos elementos indígenas brasileiros não só aponta outros caminhos, como promove uma espécie de instância do culto da natividade.
Alguns dos fragmentos só fortalecem a concepção de que se trata de um álbum que deve ser experimentado de uma única vez, porque é uma sinfonia dos micro detalhes que se impõem como um todo, como uma paisagem deslumbrante de caos e beleza. Não que as referências sejam essenciais pra entender “Só Quem Viu O Relâmpago À Sua Direita Sabe”, mas também sinalizam artistas que transpuseram o black metal e apropriaram-se de um gênero tão conservador, apesar de sua etimologia teoricamente drástica, pra potencializar suas propriedades como a transcendência através de blast-beats etc.
As peças são longas porque o caminho escolhido é de reestruturar um mundo de silêncio à sua energia vital de paz, suspiros e dúvidas. O que torna a missão da Kaatayra como um contínuo desafio às propriedades naturais e musicais, de transformá-las em uníssono.
Mas como uma “nova linguagem”, apresenta suas limitações brutais ao transpô-las, são partes de um mesmo encadeamento que só se decodifica à medida que é experimentado. Há essa indistinguível qualidade de força, de algo disposto a sempre superar tudo ao redor pra ser outra coisa.
Embora cativo de um mundo, Kaatayra está completamente disposta em empurrar as possibilidades musicais pra frente. Pra colocar de outro modo, não apenas espelha um mundo de encantamento e desordem, como intermedeia uma nova maneira de abordá-lo.
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1. Chama Terra, Chama Chuva
2. Desnaturação De Si-Mesmo
3. Só Quem Viu O Relâmpago À Sua Direita Sabe
4. Bom Retorno (De Volta Às Origens)
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NOTA: 7,0
Lançamento: 1º de abril de 2020
Duração: 50 minutos e 51 segundos
Selo: Independente
Produção: Caio Lemos