RESENHA: KING VISION ULTRA – PAIN OF MIND

“Pra superar o anti-negro, teria de haver o que Fanon chamara de ‘programa de completa desordem’, uma expropriação e afirmação da própria violência perpetuada contra a existência negra e uma reorientação fundamental das coordenadas sociais da relação humana. Implicaria uma guerra contra o conceito de humanidade e uma guerra que divide a sociedade civil em seu núcleo, uma guerra civil que se elaboraria até a morte”.
Afro-Pessimism

(…) e a força da comunicação poética não vem do fato de que ela nos faria participar imediatamente das coisas, mas do fato de que ela nos dá as coisas fora de seu alcance”.
– Maurice Blanchot, “O Livro Por Vir”

Talvez o triunfo sonoro surja fora da caixa do mercado e evidencie um movimento errático onipresente em toda a história da música como margem subjacente ao discurso majoritário. Há um caminho mais ou menos trilhado (meio sem querer, meio que como constituição integrante pra algo existir) que leva as mesmas batidas antigas a um não-reconhecimento.

A composição deste álbum ressoa a partir dos resquícios históricos, em sua abrangente musicalidade e ecos sonoros, pra estimular o reencontro dos detritos e transformá-los em algo imponente. A esses recortes que se transformam em narrativa do esquecido, eu somo minhas experiências e a própria noção de que há algo perdido ao traçar uma biografia. A incipiência desse projeto é gerada na percepção de um ambiente circundante que se manifesta em vários objetos (o despertador, os passarinhos, as vozes abafadas das casas vizinhas) ao mesmo tempo em que se retrai. Eu tomo esse trabalho do músico como uma radicalização da prisão dentro de uma lógica capitalista em que uma forma de opressão específica – a negra, no caso – está desumanizada pela restrição contínua imposta pela competitividade do mercado.

King Vision Ultra me guia não por um museu de homenagens ou reconhecimentos heroicos, mas por uma realidade cheia de armadilhas que se insinuam através de pequenos anestésicos cotidianos camuflados. Essas armadilhas são reformuladas pelas aparências mercadológicas, mas sempre presentes e constituintes de novas formas de domar uma identidade e transformá-la em propriedade lucrativa, segundo Saidiya V. Hartman (em “Lose Your Mother: A Journey Along The Atlantic Slave Route”): “se a escravidão persiste como um problema na vida política da América negra, não é devido a uma obsessão antiquada com os dias passados ou a carga de uma memória muito longa, mas porque as vidas negras ainda estão ameaçadas e desvalorizadas por um cálculo racial e uma aritmética política que foram entranhados séculos atrás. Esta é a vida após a morte da escravidão – chances de vida distorcidas, acesso limitado à saúde e educação, morte prematura, encarceramento e empobrecimento (tradução minha)”.

Talvez, como escreveu Michel-Rolph Trouillot, “…o passado não existe independentemente do presente. De fato, o passado é apenas passado porque existe um presente, assim como eu posso apontar pra algo lá só porque estou aqui. Mas nada é inerentemente ali ou aqui. Nesse sentido, o passado não tem conteúdo. O passado – ou, mais precisamente, o tempo passado – é uma posição. Assim, de maneira alguma podemos identificar o passado como passado” (“Silencing The Past: Power And The Production Of History”, 1995). Nessa relação espacial, o que é dito revela-se na ação, porque “atos e palavras não são tão distintos quanto muitas vezes presumimos” (Trouillot). A composição deste disco aplica essa noção espacial-opressiva como tempos que se justapõem em uma narrativa dilacerante da impossibilidade de assumir o protagonismo sobre o próprio corpo, mero instrumento das políticas públicas subsidiadas pelo processo produtivo. A essas pessoas que falam sem a autenticidade da própria voz, erráticas sob as frequências ensurdecedoras de um barulho inapreensível, o produtor soma um livro sonoro sobre doença mental, memória e um sistema falido.

A origem deste projeto está em “pegar a história com as próprias mãos” (Trouillot) pra moldá-la como um discurso fragmentado em que a tensão dos sobreviventes revela um aspecto quase morto nas palavras e testemunhos emitidos. Eu tomo essas passagens como atravessamentos que localizam o passado como um espaço revisitado através da dor e da angústia. O livro de Trouillot fez-me perceber profundamente a tarefa do músico pra, através dos discursos justapostos, manifestar que “a história é o fruto do poder, mas o poder em si nunca é tão transparente que sua análise se torne supérflua. A marca final do poder pode ser sua invisibilidade; o desafio final, a exposição de suas raízes”.

King Vision Ultra guia-me através dos espaços possibilitados pelas frestas de testemunhos de quem passa por este mundo, porque, se o passado é um lugar, ele está sempre equacionado em uma complexa relação que faz parte do presente. As vozes são vastamente importantes porque circundam, em um movimento múltiplo, um lugar que não seria possível canalizar através da simples narrativa.

Em recentes relatos, percebe-se um passado que vem à tona não apenas como feridas, mas como contínuas ações crônicas agressivas. De fato, as narrativas são perturbadoras se ouvidas com atenção (tentativas suicidas, sistema prisional, contrabando, depressão). A percepção de quem “…se torna consciente da pele de seu corpo, sua fisionomia, como se fosse de fato um uniforme, um fardamento” (Sylvia Wynter, “Towards The Sociogenic Principle”). Se a sensação de impotência coexiste com o corpo – como a história da mulher que vai pra cadeia -, este se torna uma prisão móvel de quem existe. “Muitos historiadores estão mais dispostos a aceitar a ideia de que os escravos poderiam ter sido influenciados por brancos ou mulatos livres, com os quais sabemos que tinham contatos limitados, do que dispostos a aceitar a ideia de que escravos poderiam ter convencido outros escravos de que eles tinham o direito de revoltar-se”, escreveu Trouillot em Unthinkable. Nós avançamos com a naturalização da brutalidade e não há nenhum progresso humanitário se comparado com a lógica que perpetuava a não revolta de séculos atrás. Se tomamos como verdade as palavras ditas pelo afro-ativista Frank B. Wilderson, III: “a relação escrava/não escrava ou negra/humana nos apresenta uma dinâmica estrutural que não pode ser conciliada e que não tem um modo coerente de reparação”, os discursos do disco apresentam-se como pessoas que são lançadas em um mundo violento com o peso sanguinário da História que insiste em agredir suas vidas (com o convite a essas vozes perturbadoras, fica evidente o fracasso histórico da humanidade).

Agora em que a noção da repetição histórica sob novas formas continua retirando a autonomia laboral de qualquer um que não entre na lógica de produção, perpetuam-se os crimes antigos, favorecidos pelo hipercapitalismo que se consagra nas horas-extras, nas caçadas policiais, na distinção contratual de um RH e, principalmente, pelo registro canônico afirmar, em todas as mídias possíveis, que não há alternativa ao capitalismo. O gesto de redenção pode ser o suicídio, como as vozes afirmam. KVU descreve inocentes punidos pelo crime de existir, atormentados pela influência negativa de sussurros que surgem constantemente na cabeça provocando um desastre. A escolha do KVU atesta a caça constante no purgatório terrestre, protagonizado por vítimas sentenciadas antes mesmo de vir ao mundo.

Um disco em 2018 é capaz de discursar perdidamente em vez de simplesmente fazer o que Saidiya Hartman descreveu como “ler o arquivo é entrar em um necrotério; permite uma visão final e permite um último vislumbre de pessoas prestes a desaparecer no porão de escravos,” porque dá voz aos enlouquecidos por serem punidos pela simples existência. É uma musica que estimula (re)construção sob o cárcere corporal e institucional, em que localizar os desastres primários é apenas o início pra reascender ao controle. As vozes são usadas pra um comprometimento radical do músico com o discurso ao qual se alia e amplia a possibilidade de catástrofe pra suprimir a mansa lógica dualista que tanto é criticada por Wilderson; não há reparação possível. Antes de tudo, segundo Wilderson, “o que a escravidão realmente representa é a morte social. Em outras palavras, a morte social define a relação entre o escravo e todos os outros”.

Talvez essas vozes estejam acelerando o processo rumo ao desastre pra perpetuar o rompimento definitivo de uma lógica historicamente forçada na essência cognitiva dos seres humanos. Há um caminho pra fora deste pesadelo que “é mais do que o desejo de inclusão no conjunto limitado de possibilidades que o projeto nacional proporciona” (Hartman). A composição deste disco surge em um (eterno) período precário da História pra depor sobre a violência invisível que se manifesta no discurso de quem a sofre. Essas pessoas redimensionam o projeto, elas aniquilam o legado dualista pra tentar criar algo novo: “um intelectual negro (e todos os escritores são intelectuais) deve responder à sociedade tanto quanto ele ou ela responde aos impulsos da imaginação criativa” (George Elliott Clarke). A incipiência de todas essas vozes (os escritores citados e o criador do disco) no empenho de dinamitar um projeto capitalista que se estende há séculos, controlando corpos e subjugando culturas.

1. Pain Of Mind (Side A)
2. Pain Of Mind (Side B)

NOTA: 9,0
Lançamento: 18 de maio de 2018
Duração: 46 minutos e 44 segundos
Selo: Ascetic House
Produção: King Vision Ultra

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