RESENHA: KOVTUN – O HOMEM E A MORTE

Raphael Mandra tem nos acostumado com lançamentos longos e intrinsecamente desafiadores. Enquanto as duas obras antecessoras de “O Homem E A Morte” se prolongavam em longas e perturbadoras seções, nós éramos introduzidos em uma catarse que inevitavelmente nos engolia num buraco negro.

“O Homem E A Morte” é um sistema narrativo mais definido e reconhecível, embora a adesão de tantas disfunções (música clássica, instrumentos de sopro e ruídos) não ofusque a poesia, que dessa vez é novidade nas faixas do Kovtun.

Desde a época do Radio Morto, Mandra nunca fugiu dos temas mais sérios e filosóficos; as vinte músicas do disco lidam com nuances existenciais que perfuram o ser – os balões errantes silenciosos quando o eu-lírico desperta de uma noite de São João e o fazem lembrar-se das primeiras memórias da infância e encarar a ausência dos entes mais próximos.

O novo álbum do Kovtun fala sobre mudanças, alguém que se observa no espelho e percebe os olhos vazios, as mãos sem força e as mudanças que a vida ocasionalmente causa e nos faz reparar, subitamente, que perdemos muitas coisas, que não temos mais as mesmas feições. Pode-se classificar todo esse autodesconhecimento como uma força inextinguível da morte e todas suas ações.

Os efeitos do ser-pra-morte são sentidos aos poucos ao longo da vida, mas mesmo assim não deixamos de nos surpreender com as consequências em nossos corpos e também na alteração caótica em elementos da natureza. Por isso, a sonoridade de “O Homem E A Morte” surge como uma lenta caminhada pro fim, uma marcha contemplativa e solitária em que lembranças e coincidências entre passado e presente irrompem no narrador. O álbum, apesar de seu ritmo lento, carrega na transmissão dessas constatações uma violenta aparição da objetividade física.

Os temas podem parecer repetitivos em primeira instância, mas a sensação de angústia e solidão abraça a morte e tenta colocar alguma ordem em seu caos. Mais do que um estudo dos efeitos da morte, é colocada em evidência a relação do ser humano em toda a sua vida com o fim concreto. O diálogo entre mãe e filhas sobre um vestido abrem uma fresta pras crianças saberem sobre o fim frio – o álbum revela justamente a aparição da ideia da morte em situações corriqueiras.

O clima “quieto” do disco não exclui o som multifacetado. Aliás, “O Homem E A Morte” merece ser ouvido atenciosamente, dado que alguns sons só podem ser percebidos se a audição for atenta. O disco obviamente mira em toda essa sonoridade em favor de uma ambientação “sombrio-esquisita”, pra sair da redução básica de que a morte só pode soar dolorosa – há muitas partes estranhamente cômicas no álbum.

Criar, da certeza da morte, uma forma musical que lide com esse tema de tal maneira que nos sentimos em constante contato com sua aparição não é fácil, e todas as histórias de “O Homem E A Morte” saem da mera narrativa lírico-onírica pra atravessar o ouvinte. Parece significativo que a morte não seja só “a grande questão” como também possa ser uma sensação minimamente experimentada nas coisas mais simples e mundanas.

“O Homem E A Morte” sugere um Kovtun coerente com os últimos lançamentos, ainda assim diversificando no tema. É um projeto que precisa ser mais ouvido porque encara os temas mais difíceis e consequentemente exige do ouvinte uma entrega total.

01. Memória
02. O Cavalo Negro
03. A Morte
04. A Guerra
05. O Homem Do Mar
06. Dormindo Profundamente
07. Minha Face
08. Madrigal
09. As Marias
10. Infinito
11. O Caso
12. Tormento Obscuro
13. Cantiga Triste
14. Vento Taciturno
15. A Poesia
16. Marcha Da Solidão
17. De Repente
18. O Último Conforto
19. A Nuvem
20. A Visita

P.S.: O disco saiu “meio na surdina”, sem alarde, mesmo após a boa repercussão do anterior, “Androginóforo”, de 2015. Um dos motivos é que ele era experimental demais pra alguns dos integrantes da própria banda.

A explicação oficial é essa: “‘O Homem E A Morte’ foi lançado de forma independente no dia 19 de janeiro, era pra ser lançado por algum selo, mas em comum acordo com alguns deles achamos melhor não vincularmos a nenhum. Um foi por chegarmos à conclusão que o foco do álbum ser poesia não atingiria o público do selo, outros dois foi por um motivo mais complexo; o álbum foi feito no período de quase um ano, por cinco pessoas ao todo, porém duas pessoas não gostaram do resultado final por acharem experimental demais, oras, era pra ser experimental mesmo, mas pela diferença de idade ser muito grande entre nós, quero acreditar, o produto final soou ‘estranho’ demais aos ouvidos deles, enfim, vários fatores deixaram o lançamento deste álbum complicado demais. Por conta própria, lancei o álbum, porque acredito que a música experimental, que te tira da zona de conforto, deve ser mais explorada por aqui e não iria jogar no lixo todo um trabalho árduo, também não achei justo lançar só a parte instrumental, o contexto iria todo pro saco, acredito neste álbum da forma que ele é, ele faz parte sim da discografia do Kovtun, mas poderia fazer parte da vida de mais pessoas. Estou bancando o álbum da forma que ele foi concebido, mas espero sinceramente que o próximo álbum seja menos complicado de lidar e me dê mais prazer em divulgá-lo”.

NOTA: 7,0
Lançamento: 19 de janeiro de 2016
Duração: 109 minutos e 02 segundos
Selo: Independente
Produção: Kovtun

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