Uma guerra se instala enquanto (há muito) o capital se impõe, causando um ambiente degradado onde as pessoas estão cada vez menos capazes de se insurgir contra a classe dominante, sempre intocável, sempre distante de qualquer mudança. Policiais massacrando, limpeza étnicas nas periferias, famílias sendo dizimadas. O Ktarse sabe da queda deste tipo de humanidade – políticos, indústrias, culturas antigas. Há o frenesi constante de que tudo vai, inevitavelmente, cair e se estilhaçar, sobrando apenas projeções de esperanças em cada pedaço.
A situação da América Latina (e do mundo) é essa: o que vai sobrar são pessoas cegas, surdas e mudas, sem contestação, sem “insurgência”. O deus mitológico, os agrotóxicos que devastam os terrenos anteriormente férteis – os efeitos da ditadura do consumismo despertam (em alguma mínima válvula de escape desta opressão constante) um luta pelo direito de existir, de sobreviver. O Ktarse põe o dedo em todas as feridas (perda de identidade periférica, crescimento do fascismo, criminalização dos pobres) e tenta, em meio a tanto sangue acumulado, fazer o ouvinte despertar através desta dor, surgindo novas perspectivas contra a servidão moderna e nomeando de “guerra” o cotidiano duro.
Subverter a ordem é revolução. Pro Ktarse, é “não aceitar passivamente”. É erguido um literal “foda-se”, porque esconder este combate é esconder a verdade crua e objetiva. A tirania do capital que rouba perspectivas, um país com políticas públicas inexistentes e submisso ao imperialismo norte-americano. Analisem bem, e pensem se há realmente outra forma de dizer “não” a este inferno. Por mais que outros tipos de críticas possam satisfazer em algum âmbito estético, é preciso não só pensar a crítica como atribuir a violência aos emissores desta e, a partir de uma leitura eficaz das engrenagens do sistema, partir com tudo.
Tudo isso é sim um efeito colateral. Não planejado, talvez. Mas frente à concentração de poder que oprime e mata as pessoas, é necessária uma luta que faça jus ao tamanho de tal perversidade. Chame isso de revolta ou combate. Soam cantos que chamam a população pra compor uma autêntica e unida célula de resistência. E quando é falado em “campo de batalha”, é a subversão deste próprio termo; o Ktarse tem “esperança na quebrada”, tem a ampliada noção do perigo que é ser uma referência com ideias vazias.
O Ktarse acredita no conhecimento. É através dele (e de respectiva atribuição de quem causa a violência) que advém uma sabedoria “real”. Uma sabedoria que une todos os termos e incentiva, a partir dos pontos fracos e fodidos pelo sistema, um engajamento eficaz. Ser obediente, jamais. Fazer rimas libertárias, que libertem pensamentos, valorizem o conhecimento. Caso contrário, delinquência planejada pelo capital. A delinquência apática, traumatizada e sem perspectiva que são armas do Estado Violento pra estruturar a opressão capitalista.
O sistema de aprisionamento é criado. Não apenas a prisão dos presídios. Mas uma prisão que determina pros empobrecidos esquecidos aparatos psicológicos que os deixem sem autoestima. Isso é a consequência do Estado Violento. Não há como não fazer esta ampla leitura dos vetores dominantes que o Ktarse realiza sem avaliar toda a estrutura de poder e evidenciar fórmulas de transformar e lutar. A mente é sim um gatilho e é apostado em todo o poder cerebral a subversão do homem ao que está (em uma lógica neoliberal) fadado.
Dar espaço ao amor. Em certa canção, uma criança entra e diz um verso. A música, a partir deste ponto, adquire uma energia vibrante e combativa. Fala-se dos heterônimos de Fernando Pessoa com uma rápida destilada sobre o “estilo de cada um”, pra depois assumir que, na situação que se encontra, o Ktarse não se permite palavras rebuscadas (apesar dos versos aqui percorrerem não somente o campo de denúncia como são expressados com verdadeira carga poética). A poesia, as pessoas – existem vetores que catalisam o ser a não ser passivo, a não ser tomado pelo rancor ao olhar o mundo à sua volta e ver várias limitações que o prende de tantas maneiras.
A angústia da solidão em cima de lindos versos de guitarra. Pensei em falar de “blues das ruas” ou algo assim. “Das ruas” porque todos os cantos são percorridos; afirma-se o próprio nome pra se igualar com vários outros e procurar e lutar por esperança. Uma canção sobre morte e a partir do ponto do reconhecimento que alguém muito querido se foi; nascer um novo tipo de lucidez que, mesmo reconhecendo a dor, encontra um motivo a mais pra orgulhar quem se foi.
O disco na íntegra:
Perder uma pessoa. Ficar desorientado. A falta de palavras é reconhecida em “Da Luta Ao Luto” e a canção termina com uma frase linda sobre lutar pelos sonhos de alguém morto. Em “Biografia De Um Radical”, é narrado um porvir revolucionário. E se esta resenha fala tanto sobre uma suposta “revolução”, é porque o Ktarse enxerga claramente a opressão das classes. É porque no sangue do Ktarse o terror capitalista já foi detectado. A partir deste ponto, não há volta: declarar guerras diretas aos senhores da guerra. E mais do que algum circulo vicioso que algum reacionário poderia justificar, é justamente sobre sair da ideologia dominante, combater a violência capitalista de modo que toda a engrenagem que fez este sistema rodar seja terminantemente quebrada. Porque não há espaço pra ignorância ou estupidez, a consciência crítica direta é apresentada como o terror do capitalismo.
Em meio ao racismo e a opressão, a rebeldia. Em meio à violência financeira que parasita numa parcela considerável da população, o Ktarse convida à luta. Não sem orgulho. Não sem exigir respeito. A covardia é detectada. A história do hip hop é trazida à tona de verdade, não sob a reprodução da indústria estadunidense. Se combate este aspecto amplo porque a subversão tem que ser o mais abrangente possível. Não há outra forma. O Ktarse diz pra seus “manos do gueto” sobre a contracultura, sobre romper a lógica dominante. Caracteriza-se um rap combatente que avisa: “lutar permanentemente”.
“Nos querem sofrendo” é exclamado em “Mar De Lamas” (com participação de Gustavo Bellatore). Cair no pesadelo da realidade é essencial pra iniciar uma luta. Resistir à exploração, desde quando o sangue dos escravos cai em nossas terras. E o Ktarse quer toda essa revolta agora. Negando diversos idealismos e assumindo uma luta de classes que é o direito de lutar pela melhora de todas as vidas. “Treinados e convictos” é afirmado. Transformar-se em revolta e raiva que ultrapassam o medo pra estimular – sem medo algum – a insurgência.
Todo poder aos insurgidos. Os punho fechados representam tanta coisa numa época em que a estagnação parece ser a lei. Não é simplesmente um ódio a uma classe e sua respectiva ganância, mas toda a representação que a falsa paisagem rica dos conglomerados urbanos carrega consigo. Ostentação, luxúria em um mundo absurdamente desigual. Isso é capital somado em cofres situados em paraísos fiscais. A carnificina (subnutrição, crueldade, barbárie, falta de moradia) aponta que o único caminho é o completo. Interpolando as armas mais radicais aos conhecimentos mais amplos. Mas o Ktarse assume: às vezes dá mais vontade de vingança do que propriamente de justiça. E é justamente controlando os próprios instintos em prol duma coletividade maior que abre um caminho pro fim da marginalização completa.
A religião também é justamente afrontada. As relações sociais impostas por organizações institucionais que diminuem a capacidade de indignação. E o Ktarse nem ataca a fé propriamente dita. É admitido o pluralismo cultural como único caminho pra uma convivência religiosa pacífica. Pois as grades manipuladoras erguidas pela religião não se diferem muito das prisões construídas pela imposição autoritária do capital. Há uma pergunta sobre a construção do universo “seis dias só? Isso tem algum sentido?”. Esta pergunta embora relativamente básica, é um exemplo da insurgência contra o maniqueísmo de massa.
Continuando no tema da religião, é explicitada os tratamentos brutais e utilização de tortura através desta durante toda a história da humanidade. Por isso é justo perguntar “onde está Deus?” (se alguém souber, favor responder). O conhecimento do Ktarse é tão eficaz que cita exemplos da Sibéria, a atrocidade na Ucrânia – sempre falando sobre a perversa limpeza étnica. A violência extrema contra minorias a partir da tirania religiosa é desenvolvida narrando episódios de massacres históricos. Crueldade, incestos, violência – é realmente isso que deve ser revelado.
A guerra de 90 na Bósnia: 40 mil mulheres estupradas. Refugiados migrantes. Soda cáustica em nome de deuses tirânicos. A matança feroz de Napoleão. A prepotência que o Ktarse atribui aos deuses é um reflexo da barbárie permitida pela mente pervertida dos que controlam. Mais uma vez a pergunta “onde está Deus?” frente a todas as barbáries listadas. Alcorão, bíblia – Katarse pergunta, inspiração divina como? E ao perguntar sobre a suposta ligação divina e atribuir todas estas dúvidas investigativas em memória de José Saramago que o ateísmo sai de seu suposto fundamentalismo pra um elemento combativo frente uma crueldade ancestral.
Cultura transformada em mercadoria. Desde as épocas coloniais, a exploração europeia causa refugiados ao mesmo tempo que a xenofobia se ergue de maneira desumana nos dias de hoje. Ktarse avisa sobre a falta de direitos humanos, salários e como as vítimas localizadas na América Latina são resultados direto da exploração neocolonialista. É exigido o combate à xenofobia fascista enquanto diversas vertentes desta crescem no Brasil. Pode soar muito incômodo ouvir esta militância bombardeadora e não deveria ser de outra forma. Se a realidade vai ser realmente tema de um trabalho, tal qual é em “Inflamando A Insurgência”, ela deve ser escancarada sem meias verdades e com o maior número de feridas possível.
Toda esta ampla temática desenvolvida até aqui recai de uma forma muito violenta e pesada sobre as crianças. Talvez as diversas representações simbólicas da infância que evidenciem a diferença ofensiva entre classes. O assassinato perverso nas periferias, a forma absurda que a mídia sensacionalista explora o “espetáculo do horror”. A própria Nações Unidas já admitiu este fracasso. O fracasso de todos. Quando a lógica perversa já tomou bastante de tantas vidas que as crianças não tem mais escapatória.
Mas o Ktarse afirma que “o povo é forte”. Volta a insistir em saúde, educação, moradia, polícia desarmada, lazer pra “criançada se divertir”. Correr pelo certo, não desistir, não sucumbir aos caminhos mais fáceis. Estes diversos combates evocam a resistência, evocam um sentido de união que é providencial pra transformação do seu próprio meio. Assim, é possível modificar por meio de alternativas que persistem, que são a resistência erguida em prol duma libertação subversiva.
É anunciado um decreto na última faixa. É dito que o amor tudo compreende. O amor, o beijo, o carinho e o respeito são vistos como armas proibidas por algum fascista. Depois, entende-se: é um anúncio vindo diretamente de Suzano (grande São Paulo). É na ampla extensão urbana que o desafio começa.
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01. Trogloditas Das Cavernas Cibernéticas (part. José Poeta e Palhaço)
02. Caos Contemporâneo
03. Insurgentes
04. Inflamando A Insurgência
05. Um Pouco Mais De Zapatismo
06. Valorização Do Conhecimento
07. Não Somos Perdedores 20:10
08. Estrangeiro De Mim Mesmo (part. Marcos Vinícius)
09. Da Luta Ao Luto
10. Biografia De Um Radical
11. Rap Ativista (part. Maria)
12. Mar De Lamas (part. Gustavo Bellatore)
13. Todo Poder Aos Insurgidos
14. A Era Da Barbárie
15. Meu Princípio É A Dúvida
16. O Algoz Da Humanidade
17. Relatos De Um Refugiado
18. Crianças Invisíveis (part. Leandro Consciência ao Gueto)
19. Se For Pela Luta
20. Decreto Libertário (part. José Poeta e Palhaço)
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NOTA: 9,0
Lançamento: 10 de janeiro de 2017
Duração: 77 minutos e 38 segundos
Selo: Independente
Produção: Leal e Bira Way e Fora de Esquadro Produções