Os batuques cósmicos não vêm de outro mundo. Os tambores inquietos não possuem nacionalidade específica, apesar dos nossos preconceitos. A arte de sonorizar a batida, ou a possibilidade de transformar sons secos em arte, é tão antiga quanto a própria humanidade. Aparentemente, está em nós.
Ritualísticos, comunicativos, expressões musicais, os tambores evoluíram das mais rústicas cascas de árvore ao complexo idioma tecnológico, obtendo do corpo uma resposta qualquer, invariavelmente. No caso de Laurence Pike, muitas respostas – variadas respostas.
Laurence Pike, do PVT e do Szun Waves, colaborador do Liars, tem em “Holy Spring” (seu segundo disco) uma maneira de se comunicar espiritualmente com o mundo. O australiano utiliza a ferramenta do som do batuque pra aproximação com o os ouvidos finais, desenvolvendo rituais próprios, expressões suas, sentimentos diversos. Mas não só: ao redor das batidas, uma aura espectral (como se ouve na faixa-título, especialmente), contemplativa e reverencial.
“Holy Spring” – a “primavera sagrada” – remete à antiguidade. Apesar da tecnologia empregada, é algo primitivo. Diz-se que, nos primórdios da humanidade, quando a população de um povoado crescia, os jovens que mais se destacavam eram enviados a lugares distantes, a fim de começarem um novo povoado, fundando-o sob os mesmos princípios morais do lugar de onde partiram. Eram educados pra esse fim. Carregavam os mais caros valores daquele povo pra se expandir pela Terra. Desse princípio, dessa ideia, nasce, por exemplo, o Movimento Apostólico Internacional de Schoenstatt, com o ideal de “espalhar pelo o mundo o amor de Jesus”, com os “puros” e “intocados”, sem vícios de uma sociedade já corrompida. A ideia, já cantada anteriormente em verso por Ludwig Uhland, em “Ver Sacrum”, fala do poder divino ressentido pelos erros dos homens e que exige o pagamento de “uma primavera da consagração”, frutífera e que tudo que nasce dela seja sagrado pra aplacar esse poder divino.
A inspiração, porém, veio mesmo das dissonâncias de “A Sagração Da Primavera”, de Igor Stravinsky (balé de 1913) – uma obra que “revolucionou praticamente todas as principais características da música de então, o arcabouço do ritmo, a estrutura orquestral, o timbre, a forma, os aspectos harmônicos, a maneira como se utilizavam as dissonâncias, e o valor conferido à percussão, a qual sobrelevava a própria melodia, algo impraticável até este momento”. É a história de um ritual tribal, onde uma jovem virgem deve ser sacrificada, como uma oferenda ao deus da primavera, pra que, na primavera que se inicia, as terras fossem férteis.
Pike não se pretende a tanto. Ele “apenas” associa os batuques primitivos e tecnológicos ao embalo igualmente primitivo da crença. Em torno disso, constrói seu ambiente sagrado. Sons experimentais, embora nunca inacessíveis, crescendo conforme se avança a teatralização da pregação. As faixas falam de círculos místicos, filhas de Marte, a dança da Terra, o canto dos tambores, o choque de esperança, os ritos como um ciclo de criação, de renovação e de esperança, que infelizmente não estão desassociados do polo contrário, de destruição, expiação e desesperança. Está tudo interligado.
O músico é bastante feliz em seu intento. Com base nesse background, é possível acompanhar as pretensões do autor e se emocionar com o resultado. Mas, mesmo sem tanta informação, não há em “Holy Spring” nada que impeça sua apreciação. Seu spiritual jazz é acessível ao ponto de se identificar aqui um dos mais primitivos sentimentos humanos: a reverência diante de uma obra de arte como algo além do nosso alcance.
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1. Mystic Circles
2. Daughter Of Mars
3. Dance Of The Earth
4. Transire
5. Drum Chant
6. Holy Spring
7. The Shock Of Hope
8. Taught By Spirits
9. Rites
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NOTA: 9,0
Lançamento: 17 de maio de 2019
Duração: 40 minutos e 27 segundos
Selo: The Leaf Label
Produção: Laurence Pike