Não sou daquele tipo de apreciador que espera que seus artistas mudem a cada disco, que inovem, que sejam originais. Recalcular influências e transformar em algo seu já é monta criativa suficiente pras minhas expectativas. Mas quando a renovação acontece, eu simplesmente abro um tremendo sorriso de satisfação.
Artistas não são indivíduos muito afeitos a humildade, a críticas e alguns realmente acreditam que o mundo gira em torno de si. Por ler entrevistas de Lê Almeida aqui e ali, o leitor provavelmente pode achar tudo isso dele. Entretanto, ninguém pode negar que Almeida é corajoso e batalhador.
Há uma máquina que gira em torno do seu nome. O indispensável selo Transfusão Noise Records, a casa Escritório, os artistas que soam como ele, as bandas que ele toca (e não são poucas), os shows que promove, tudo é obra de uma mente que se entregou à música e mesmo sem as grandes tribunas da imprensa lhe dando espaço, pavimentou seu caminho e seguiu em frente.
Ele é um herói pra muitos, um exemplo, um ícone. Da periferia do Rio de Janeiro, levou seu nome e o estilo que o envolve pra além do Brasil. Por que um cara desses mexeria no time que está ganhando? Porque senão não seria o Lê Almeida criativo, artista diferenciado de um subterrâneo que se infla de egos e não aceita um olhar apurado. Repito: Lê Almeida é corajoso. Ele resolveu seguir um outro caminho.
“Mantra Happening”, seu terceiro disco cheio, não é exatamente uma ruptura com o passado (recente). Em “Paraleloplasmos”, disco bom mas inconsistente, de 2015, ele se mostrava atento a uma vontade de elaborar um tanto mais suas canções simples, curtíssimas e diretas. “Fuck The New School” podia estar nesse “Mantra Happening”. O rock adolescente de garagem foi ficando pra trás.
O novo trabalho é como a tal canção: cíclica, hipnótica, suja, simples, cativante. São apenas cinco músicas e o disco tem mais de cinquenta e cinco minutos. O Robert Pollard nele deu um tempinho. “Mantra Happening” é um disco de “conjunto”, o Conjunto Lê Almeida, que tem seus fiéis escudeiros João Casaes (guitarra), Bigu (baixo) e Joab (bateria). Bandaça ao vivo, pertinente em estúdio. Fez a diferença no produto final.
As cinco canções incluem pelo menos duas preciosidades kraut indispensáveis pra quem gosta do estilo: “Oração De Noite Cheia” e “Maré”. Não se pode excluir do apreço “Enamorandius”, embora menos eloquente que suas parceiras anteriores.
A guitarra rasgada e cíclica percorre os mais de dez minutos de cada uma das duas músicas, convidando o ouvinte a uma viagem, à reflexão pessoal, como um mantra. Lê Almeida não faz firulas com o instrumento. Ninguém do conjunto faz. E a música flui intensa.
O que pesa contra “Mantra Happening” são as letras. Ingênuas, um tanto infantis, elas têm a seu favor apenas o fato de serem dispensáveis no diante do todo, a voz é um instrumento. A cantar em hebraico daria na mesma. Exemplo: em “Maré”, Almeida diz que “amar é demais, um dia eu chego lá”. E é isso.
Porém, é um detalhe (sim, a poesia falada aqui é um detalhe) que não desabona a obra. Acima disso, fica a coragem de Lê Almeida e sua turma de saírem do lugar-comum que construíram pra si e pelo qual foram merecidamente reconhecidos. Os próximos desafios de reinvenção prometem ser intensos. Mas ele deve tirar de letra.
NOTA: 8,5
Lançamento: 11 de março de 2016
Duração: 56 minutos e 12 segundos
Selo: Transfusão Noise Records
Produção: Lê Almeida e João Casaes