Quando pediram pra Lauren Bolger gravar um disco com canções “normais” ela se inclinou a fazê-lo. Ela precisou antes entender que suas poesias sonoras de mais de dez, quinze, vinte minutos não cabem nesse produto chamado “disco”. Vale perguntar o que é um disco, afinal, numa era em que quase ninguém compra discos, CDs, LPs, fitas cassetes e que o conceito se tornou vago tanto quanto a música em si.
Locean, o seu projeto musical, alicerçado em parcerias com gente do Gnod, do Luminous Bodies, Ten Mouth Electron e outros, é uma intensa e insistente sessão de improviso que resulta em obras diversas. Numa única sessão no porão do Star And Garter, em Manchester, Inglatrerra, o coletivo gravou três álbuns, todos com dois enormes temas: “Jimmy” / “Romeo, Done”, “Scratches” / “No Skyn For Chav Anglais” e este “Object” / “Disco?”.
O seu krautrock-no-wave, com Bolger gritando de improviso versos criados na hora, linhas poéticas que ela trata como sua “arte principal”, esgota os músicos de tal forma que é preciso se distanciar um pouco. O mesmo efeito não se dá no ouvinte. Há uma renovação, mesmo que sedimentada num olhar ao passado, de que a música não cabe em estereótipos de acessibilidade, num mundo carente justamente de acessos. Estamos nos afastando em “redes sociais de isolamento”, os “sozinhos-juntos”, onde aceitação é uma moeda desejada tanto quanto a busca por admiração – aceitação e admiração andam juntas.
Bolger e Jay Temple (que criaram o Locean) não querem se enquadrar. Se afastam dessa premissa estapafúrdia de que você só existe se alguém enaltecer sua existência. As notas circulares que as guitarras e efeitos jogam não só oferecem uma alternativa à lógica consumista dos “três minutos” como absorvem o ouvinte pra um outro estado de percepção.
Não se trata de separar “música-objeto” de “música-arte”. Música é música. Música com poesia, música de amor, música sem mensagem, música vazia, não importa. O ato de se afastar do que é objeto de prateleira de mercado diminui seu impacto de consumo e o recoloca em outro estrato, o que não necessariamente se dá pelo prisma da qualidade, esse um enfoque até certo ponto bastante subjetivo. O Locean se afasta o quanto pode, provavelmente em busca de liberdade criativa. Mas tal e qual pessoas que vivem em nichos, a banda sabe que ela sempre vai ser igual ou parecida com algo, com um grupo de artistas, com uma escola ou outra. Não se consegue o isolamento total.
Nesse dilema, alguém pode gritar “autenticidade!” e antes que pareça um infante defendendo uma utopia, deve acrescentar “satisfação!” à equação. Talvez assim, à margem do que o mercado autentica como correto e embalável, o Locean possa encontrar o seu objeto-disco, sem se importar de que seja de fato algo palpável pra quem quer que seja.
“Object / Disco?” existe, ei-lo. A inegável existência do trabalho destrói qualquer teoria mais elaborada que venha distorcer o elo produto-arte: se existe, pode ser apreciado, vendido, consumido. Então, Locean também não está em busca disso. Daí, que reduz as alternativas a uma específica: contestar. A arte, no caso de Bolger, falada, gritada e retorcida, existe pra contestar, não importa a pauta. Pode ser a dor no coração, a vida, a sociedade, a própria arte. E num protesto não pode haver amarras, nem mesmo o incômodo alheio. Destruir o próprio meio de propagação de ideias pode ser um perigo sem volta, mas é o que dá sustentação pra que ele continue estimulando as pessoas.
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1. Object
2. Disco?
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NOTA: 9,5
Lançamento: 3 de julho de 2017 (original) e 18 de maio de 2018 (relançamento)
Duração: 33 minutos e 22 segundos
Selo: Box Records
Produção: John Tatlock e Locean