É um ato político que este disco da Lupe De Lupe tenha mudado o título de “Trator” pra “Lula”. Não só pela obviedade do nome do ex-presidente da República (2003-2010), mas porque o trator virou símbolo da deformidade que o governo de Jair Bolsonaro virou. O “passar o trator” por cima dos direitos fundamentais dos cidadãos e dos trabalhadores; a destruição da Amazônia e do Pantanal e dos poucos vestígios de Mata Atlântica; o endeusamento da ilógica, da mentira, e da falsidade trucidam o mínimo de democracia que o país construiu de 1985 pra cá; o neopentecostalismo que destrói a ideia do estado laico, que respeita as crenças e não-crenças dos cidadãos; tudo é “passar o trator”.
Mas a Lupe De Lupe realizar um ato político não é novidade. E nem de se espantar. Não deveria nem virar notícia. Só que não vivemos tempos normais (não há quem consiga definir os atuais tempos como minimamente “normais”). E uma palavra de posicionamento político vale mais do que milhões de textões justificando o injustificável ou analisando a brutalidade que tratora nosso equilíbrio social.
Vivemos em tempos de isentões não querendo perder seguidores, de roqueiros envelhecendo envoltos em conservadorismo, de dancinhas inúteis de Tik Tok, de letras sem ter o que dizer. Os poucos que se posicionam a favor do mínimo de razoabilidade, merecem ser ouvidos – e não por concordarmos com eles, mas porque o debate não pode morrer com medo de milícias cibernéticas, de um governo autoritário ou pelo temor de não macular quem não concorda com a gente.
“Lula”, o disco, é, sim, endereçado ao ex-presidente. A banda deixa claro: “O que é Luiz Inácio ‘Lula’ da Silva senão esse amontoado de vontade, energia, vitórias, derrotas, coragem, defeitos, qualidades, belezas e tristezas? O que é a Lupe De Lupe? O que significa a trajetória de Lula e a influência dele na população desse país antes, durante e depois de seus mandatos? Qual é seu legado? E o que é o Brasil senão uma extensão de tudo isso? Novamente a metonímia é bem vinda”.
Lula merece esse disco. Devia estar na capa. Com a faixa presidencial. Talvez não sejam tempos pra figuras de linguagem. As pessoas não entendem ironias, metonímias e metáforas. Entretanto, a Lupe vai mais longe do que apenas panfletar. É um “estudo” (perdão pelo termo) sobre esse Brasil e sobre as pessoas que habitam tal país.
As músicas têm nome de cidades e tals (é uma viagem longa demais, uma pena), um conceito que extrapola só a intenção e parte pra tentar abraçar ritmos em torno da protagonista guitarra que simboliza o rock (ou o punk ou sei lá mais o quê) – são as guitarras que fazem toda a cama de “Lula”: “todas as canções possuem nomes de cidades do país e passeiam por inúmeros ritmos nacionais, além de sabotarem alguns ritmos internacionais também”. Lula e Lupe De Lupe são o Brasil – a frase é deles e é minha também.
O Brasil é um troço diverso, todo mundo sabe. Contudo, a banda destaca nele os brasileiros e o ódio e o amor. “Quando eu vejo esses casais / Que almoçam em silêncio / Que se encaixam feito peças de um lego falsificado / Eu agradeço a deus / Por a gente ainda fazer amor / Como se fosse a primeira vez / Não há sentimento maior do que ser amado e amar alguém / Sem ter que tentar ser outra pessoa senão nós mesmos”, a banda canta em “Fortaleza”, com a voz de Jonathan Tadeu, resumindo em poucos versos o que é o brasileiro atual, o brasileiro médio, o hipócrita que adora preservar as aparências, que fala de amor e destila ódio por aí, que infla preconceitos, que pisa em quem puder pisar só pra “vencer”.
Isso em “Fortaleza”, mas podia ser em Maceió, Pelotas, Sorocaba, Contagem, Uberlândia, Cabo Frio e todas as cidades citadas e as não citadas.
Tem mais: “todo mundo é o ditador / da ditadura mais sanguinária do planeta / todo mundo é o entusiasta / da tirania do amor”, em “Maceió”, na voz de Cícero Nogueira. “Não quero mais sonhar / Com o mundo de depois / Eu quero o mundo de hoje / (…) / Quero sair por aí / Mesmo sem ser perfeito / Eu queria ser eleito / Dono do seu coração”, em “Natal”, na voz de Vitor Brauer.
O disco cheio de criadores e colaboradores da Lupe é, de fato, uma tripa de Brasil, uma amostra talvez insignificante. Esses brasileiros estão por aí. Outros brasileiros tantos estão por aí. Eles não resumem o Brasil, mas eles são também o Brasil. Assim como a Lupe De Lupe. Assim como Lula. E, infelizmente, assim como Bolsonaro.
A diferença é que ainda tem gente lutando, gritando, povoando, criando e se movimentando pra que o Brasil seja mais Lula, com todos os seus defeitos, do que Boslsonaro, só de defeitos. Se for com guitarras cortando a pele, melhor ainda.
—
01. Coromandel (com Fernando Motta)
02. Fortaleza
03. Pelotas
04. Sorocaba
05. Salvador
06. Uberlândia
07. Contagem
08. Porto Velho
09. Goiânia
10. Resplendor 02:57
11. Caetés (com Fernando Dotta)
12. Maceió
13. Santa Maria
14. Cabo Frio
15. Natal
16. Brasil Novo
—
NOTA: 7,5
Lançamento: 18 de maio de 2021
Duração: 60 minutos e 12 segundos
Selo: Geração Perdida e Balaclava Records
Produção: Vitor Brauer