Eu esbocei duas resenhas e ambas falharam ou por falta de transparência ou por tentativas bobas de parecer sofisticado. Elas falharam em evidenciar o que eu senti durante o álbum, os momentos que eram tão cristalinos como indescritíveis, como uma dimensão profundamente humana, ainda que distante (as melhores respostas seriam evidenciadas numa espécie de vídeos paralelos que passam num mesmo cômodo, somando dissonâncias e alusões).
“Realejo” é uma colagem de desgastes como manifestação de presenças e ausências, em que não há qualquer bifurcação, mas um campo que abriga diversos momentos suspensos no tempo, aguardando pra serem retomados, revividos, reconfigurados e transformarem-se em conjunto com outros. É a ultra-realidade repelida em prol do potencial transformador cultural.
Eu estimo o fato de alguém extrair a abstração da realidade, configurando em re-disposições sonoras e sintetizadores. Eu estimo porque isso lembra a mediação artística como meio de sinalizar outra operação. Eu estimo porque os mundos criados nas peças são mundos que partem de um real categórico e o deriva em suas infinitas combinações, reconfigurando não só o momento como a lembrança de um momento e tal lembrança como ponto de partida criativo pra desenhar um espaço expressivo que abriga todas as derivações (anteriores e posteriores). Como uma colheita interminável de experiências. Essa é a licença maior, a licença da memória, do esquecimento e do intervalo criativo que surge quando ambas se fundem ou se anulam, criando um impressionante gesto artístico.
É um aceno em que é possível delinear uma trajetória. Um curso onde se encontram os espectros do que já passou, o esquecimento como uma presença intimidante. Posso não ter muito a dizer sobre a experiência concreta de outrem, mas são nessas espécies de vestígios memoriais que um gesto inaugural é possível.
Há mais dor do que se pode imaginar, mas também são essas marcas que possibilitam as ligações, a conjuntura asfixiada que tem de ser expressada. Mas, mais abstrato ainda, uma subjetividade individualizada que reconhece sua dimensão singular na existência de outras, sejam pessoas rezando ou a voz do vagão quando se chega a uma estação de trem. O sofrimento não conhece uma identidade particular. Se Manuel Pessoa De Lima está utilizando seu sofrimento, é como uma confissão selecionada de suas paisagens mentais (como um lembrete humilde de que todos carregam sua bagagem de sofrimento. Ninguém é invulnerável; todos carregam o fardo da história).
Sinceramente, “Realejo” é uma das coisas mais maravilhosas que ouvi recentemente, redimensionando continuamente seus sons pra mostrar que, se algo existe permanentemente, é o movimento.
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1. Realejo
2. Presenting Yourself
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NOTA: 9,5
Lançamento: 17 de janeiro de 2020
Duração: 39 minutos e 19 segundos
Selo: Black Truffle
Produção: Manuel Pessôa de Lima