“Ser” e “existir” possuem significados bastante distintos na língua portuguesa. “Ser” é um processo de construção, ativo. “Existir” não necessita de nada, é passivo. Contudo, como diz no texto de apresentação de “Rocinha”, Mbé é palavra que em yorubá significa “ser” e “existir”. E faz todo o sentido. Porque, historicamente, “ser” e “existir” pra algumas (muitas, a maioria) pessoas é a mesma coisa.
“O que vocês esperavam que acontecesse quanto tiraram a mordaça que tapava essas bocas negras?”, pergunta o sample, na faixa de abertura, “Aos Meus”. No que se pode responder, complementando: “Esperavam que elas lhes lançassem louvores? E essas cabeças que seus avós e seus pais haviam dobrado à força até o chão? O que esperavam? Que se reerguessem com adoração nos olhos? Ei-los em pé. Homens que nos olham. Ei-los em pé. Faço votos para que vocês sintam como eu a comoção de ser visto. Hoje, esses homens pretos nos miram e nosso olhar re-entra em nossos olhos. Tochas negras iluminam o mundo e nossas cabeças brancas não passam de pequenas luminárias balançadas pelo vento”.
Estamos ainda neste ponto da história. Os pretos e marginalizados lutando por oportunidades e uma miúda elite branca e endinheirada lutando contra e sabotando. Não os olham nos olhos. Não encaram a realidade. Se a escravidão tivesse sido “ruim pra economia”, o tráfico de pessoas humanas teria continuado. Aqui estamos nós.
“‘Rocinha’ é um disco que nasce na própria favela”, diz o texto de apresentação. “Todas as experiências vividas, lidas e ouvidas ali e à margem da Zona Sul carioca, são decodificadas em movimentos sonoros (…) Do tambor ao Fruity Loops, a história continua sendo contada, moldada, na procura da liberdade física, mental e espiritual. Os samples funcionam como amostras de onde viemos e do que somos, as batidas deixam pegadas nas trilhas e os ruídos ressoam aquilo que não nos contam”.
Não olham nos olhos e não escutam. Ouvissem, se deparariam com a beleza de “Cerimônia”, com Juçara Marçal.
O disco, lançado pela sempre relevante etiqueta QTV, está além de um duro processo político e reparatório. É uma bela obra de colagens, cantos e melodias. Um trabalho delicado de ruídos e pesquisas de campo: “as batidas e cantos são um dispositivo e um circuito através do qual as populações negras conservam e reinventam práticas e saberes marginalizados pelo sistema cultural vigente”.
Sim, porque “ser” e “existir” passam a ser diferentes quando se contrai a necessidade de reafirmar a história, imprimir na memória o passado e colocar o futuro em foco construtivo. Fôssemos uma sociedade idealizadamente igualitária, passado, presente e futuro fluiriam suave e normalmente. Estamos longe disso, claro, e por certo nunca chegaremos lá.
Eis que “Rocinha” é um disco não abrupto. É dócil. É como uma canção de ninar pra esta sociedade ter pesadelos com o que fez e segue fazendo, com as dificuldades que impõe e com os privilégios que tenta sustentar. “Rocinha” não está só no campo do discurso e essa é uma de suas belezas – a leveza melancólica de “Cerimônia”, “Maria Vieira Do Nascimento” e de “Ponto” colocam o disco aí.
Não que essa sociedade, construída e fomentada na profunda desigualdade tenha lá muito reparo. Mas Mbé consegue seu intento, “nos apresentando suas aldeias e vilarejos, as crianças e animais que passam, o som do rio, da mata, nos levando para lugares muito além da música”. Nos leva à reflexão, à história, a um respiro de sossego. Nós existimos e somos.
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1. Aos Meus
2. Cerimônia (com Juçara Marçal)
3. Celebração Do Xingu Ao Congo
4. Maria Vieira Do Nascimento
5. Ponto (com Zé Mekler)
6. A Caminho De Palmares (com Juçara Marçal, Luizinho do Jêje e Orlando Costa)
7. Mistura Baiana (com Lucas Pires)
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NOTA: 9,0
Lançamento: 19 de março de 2021
Duração: 23 minutos e 12 segundos
Selo: QTV Label
Produção: Mbé e Bernardo Oliveira