“As músicas do ‘S3RP3NT’ são pra ser um hino. As pessoas trans não têm hinos suficientes e nós merecemos ser celebrados. Quebramos barreiras simplesmente existindo como nosso verdadeiro eu. Quero que essas músicas nos levantem, nos celebrem, dancem, nos conectem e mergulhem mais fundo em nossas transformações. Vamos cultivar nossas rosas agora enquanto ainda estamos aqui. Faça o solo rico e passe em frente”, diz o texto que abre o Bandcamp do disco de estreia de Mona Demone.
Mona Demone é uma trans feminina, uma artista multidisciplinar. Ela começou quadrinista e seus quadrinhos documentam sua relação com sexualidade, gênero e autodescoberta, enquanto sua personagem viaja por mundos surreais. Também é pintora de murais em grande escala em centros comunitários queer no miolo dos Esteites, o que, convenhamos, é praticamente um ato revolucionário.
Mas é seu projeto de música eletrônica que promete ganhar mais eco, dimensão e alcance. Quer dizer, seu primeiro disco “S3RP3NT” não é exatamente comercial e de fácil assimilação. Ao contrário, a leitura é estranha, quase um pedido de afastamento. Ao mesmo tempo, é um transe. Batidas ora saudosistas (“Dimension” parece usar uma bateria eletrônica surrada dos anos 1980), ora tântricas, ora envolventes, são envolvidas por loopings, por cantos ritualísticos, um chamado para outras pessoas trans, femmes, queers, profissionais do sexo, pessoas lutando contra o capitalismo, pra se juntarem a ela “na forma atual que habitam”. E, assim, criam o que alguém chamou de “experiências sonoras densas”. Mas o tema é emancipação e a liberdade.
O disco “é uma coleção de músicas construídas em Los Angeles, entre 2017 e 2019, em um Korg Electribe esx-1” que é esse aparelhinho aqui. “É uma carta de amor pra Los Angeles, seu oceano e pra pessoas trans”, resume. Cada música do S3RP3NT começa com a construção de batidas e camadas sobre linhas de baixo repetitivas, e ganchos para tricotar um abrigo, para esticar e manter nossas formas em mudança”.
Seus vocais flutuam em algum lugar entre Jimmy Somerville e uma Björk ainda mais estranha. É quase dark, apesar desse quadro pintado. Creio que o Clan Of Xymox adoraria ter um vocal desse – ouça “No Fl3sh”. Mas, veja, não é algo pra baixo ou soturno ou pra ouvir em porões escuros, com luz negra e nenhuma interação humana. A música de Demone pede o contrário: luz e empatia, interação, amor, contato. O ouvinte que se vire pra lidar com as informações.
Ou espere “Body”, com suas batidas eletrônicas-querendo-ser-house, dizendo que estamos aqui pra dançar (vamos lembrar de Pet Shop Boys, se o Pet Shop Boys não ganhasse camadas de intenções comerciais) e encarar o mundo de maneira mais humana e despreocupada, algo que todos sabemos ser difícil pacas.
Mas é que pra Demone, em seu entendimento de pessoa, é bem mais difícil, em um mundo que gostaria de ver apenas homens-homens e mulheres-mulheres e de preferência se relacionando apenas na equação homem-mulher (no singular). Ainda bem, a natureza é mais sábia e não tá nem aí pra idiotas conservadores. As pessoas são o que são e vão ser felizes como são. É o que se espera. Demone canta a isso. É também de sua natureza cantar e tocar. “Eu cantaria a todos”, ela diz. “Ambos e prestes a iniciar sua transição, todos à sua maneira”.
Em “Wav3rave” ela resume: “aos seus olhos, é um homem com uma mente inclinada / Indefinido pelos limites da carne que nos prende”.
“Em última análise, é o amor T4T (trans pra trans) que me permitiu conectar-me ao meu corpo, ver plenamente e sentir-me visto. Quando eu conheci uma gracinha que me incendiou no auge do verão de LA, enquanto eu pedalava pelas ruas desbotadas pelo sol, as palavras ‘compartilhar esta dimensão’ se repetiam na minha cabeça até que nossas realidades se entrelaçassem. Surpreendeu-nos quando engravidamos. Éramos tão estranhos que quase esquecemos que sexo não era apenas exploração dos outros e de si mesmo. Então éramos duas pessoas trans esperando uma nova vida. Quando liguei meu equipamento, levantei minha cabeça para trás e cantei ‘eu vi você, nos meus sonhos’, começou a soar diferente. Uma onda sonora dobrada e amplificada, cortando a umidade. A maternidade como uma chance de vê-la e senti-la novamente pela primeira vez. Uma serpente encontrando sua cauda”, descreve.
É o renascimento de uma pessoa, em sons e cantos.
NOTA: 8,0
Lançamento: 23 de agosto de 2022
Duração: 48 minutos e 41 segundos
Selo: Ratskin Records
Produção: Mona Demone
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